São Paulo, terça-feira, 22 de abril de 1997
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"Nada de tramóia com o Mickey"

NORMAN SPINRAD
DO "LIBÉRATION"

Leia a seguir, trecho de um dos sete contos inspirados pela chegada do ano 2000 escritos para o jornal francês "Libération".
*
"Nós o mandamos para a Califórnia em classe executiva, o instalamos em um hotel de luxo em Anaheim e, quando o convocamos para fazer um relatório da situação, você me joga na cara seus criptogramas de taoísmo alterados!"
Xian Bai tentava resistir à vontade de afrouxar o colarinho estreito de sua camisa engomada (...).
"Não é um epigrama do taoísmo... mas uma máxima usada nos círculos dos altos negócios nos Estados Unidos, onde se considera algo extremamente insensato provocar a ira do grupo Disney..."
Fosse o vice-ministro das Relações Culturais Exteriores um "narigudo", sua palidez, sob o efeito da raiva, teria provavelmente sido tomada pelo rubor. Apesar da desvantagem que representava essa ausência de característica própria do tipo caucasiano, ele ainda foi capaz de expressar seu desgosto de modo bastante claro.
"E a República Popular da China é uma república bananeira aprisionada pela United Fruit Corporation?", arrotou o vice-ministro. "Nós somos o maior mercado, aquele que conhece o desenvolvimento mais rápido do mundo! Possuímos mísseis nucleares! Como esse rato ousa nos subestimar?" O vice-ministro encarou Xian Bai com uma expressão ainda mais gelada pelo ultraje: "Você disse isso para os americanos com a veemência necessária?".
"Claro que sim!", Xian Bai tentou demonstrar segurança na resposta. Mas tal firmeza não passava de dissimulação. Duas semanas em Anaheim só para conseguir um encontro com um vice-presidente de marketing de além-mar e, no fim, os efeitos da conversa foram tão desastrosos que o americano acabou se convencendo de que aquela força quase não existia.
"Seja realista, Xian", aconselhara o fulano. "A idéia de que o perigo amarelo possa invadir as praias de Orlando desapareceu com Ronald Reagan. O que você vai fazer? Munir de armas nucleares os piratas dos caraíbas?"
"Mas a China é o maior mercado consumidor do mundo..."
"E, caras, vocês não pararam de encher o nosso saco desde aquele filme de meia tigela sobre o dalai-lama. Ovitz perdeu seu cargo por causa dele, e nós gastamos uma nota num lançamento milionário. Caras, vocês deram para ele um péssimo fim de carreira!" O vice-presidente do grupo Disney levantou os olhos para o céu: "Vocês o botaram para fora!".
"E esse filme é sua vingança?"
O vice-presidente do Disney rugiu como o rei Leão: "A soma total no pé da página, essa é a melhor revanche... ".
Os servos do rato não tinham criado dificuldades para autorizar Xian Bai a assistir a uma pré-projeção da Grande Marcha (...).
O filme lhe tinha tirado qualquer vestígio de apetite -era um desenho animado caricatural da heróica Grande Marcha que abrira a Revolução Chinesa.
Escorria uma música entediante e no meio de uma coreografia à Busby Berkley figurava Chou En-Lai sob os traços de uma raposa, Chiang Kai-shek como mangusto, os soldados do Exército popular como alegres formigas e, por fim, em especial, o próprio presidente Mao de panda sorridente.
"O senhor já se deu conta de que a estréia dessa atrocidade nos Estados Unidos provocará o fechamento imediato e permanente do mercado chinês a todas as suas empresas?", advertiu Xian Bai, seguindo instruções.
"Sem problemas, cara. Você quer a estréia da Grande Marcha na China? Pois terá!" (...) "Vamos forçar o mercado chinês, sem ter que gastar fortunas. A realização da Grande Marcha custou menos de US$ 50 milhões; os negativos e a promoção nos deixaram ainda na margem US$ 100 milhões. Ora, já faturamos quase o dobro com os direitos de merchandising! O bichinho Mao, o Panda, dará grana bastante no Natal para cobrir todo o orçamento da produção!"
"Vocês... vocês pretendem vender o presidente Mao como bichinho panda de pelúcia?"
"Os pirralhos com quem fizemos os testes de marketing o adoraram. Mao Tse-tung será dez vezes mais popular como panda do que jamais foi em carne e osso!"
"Sei o que você está pensando, o mercado já está supersaturado de hambúrgueres, pizzas, tacos e frango grelhado. Mas... ninguém faz nada que seja chinês! Teremos templos do Panda espalhados em cada centro comercial do mundo! E, diante de cada templo, Mao, o Panda, em pessoa! Vamos derrubar esse pobre Ronald McDonald do alto de seus arcos dourados!"
Mesmo a versão censurada e anotada dessa conversa ultrapassou a compreensão do vice-ministro chinês das Relações Culturais Exteriores.
"Como eles esperam se safar dessa depois de tamanha afronta ao império chinês?", irritou-se ele. "Como é que o governo americano pode autorizar uma coisa dessas? Você lhe disse, com todas as letras, que nós também poderíamos adotar represálias contra outras empresas americanas?"
Xian Bai, com um ar miserável, vacilou diante do chefe. "E...?" Xian Bai inspirou profundamente, deixando seu olhar boiar por cima da mesa do escritório. "Eles... eles me deram seu próprio ultimato..."
"Um ultimato?", engoliu o vice-ministro, literalmente perturbado.
"A República Popular da China deverá autorizar a estréia da Grande Marcha em pelo menos mil salas em todo o país. O grupo Disney embolsará 60% do produto das entradas, a República Popular da China deverá ceder terrenos para a instalação de nada menos do que mil templos do Panda e ainda Disneyworlds em Xangai, Pequim e Hong Kong, além de assegurar um abatimento fiscal de 100% por um período de 50 anos sobre esses bens, ou então (...), permita-me dizer, o rato rugirá, o tio Patinhas vasculhará sua caixa-forte, Dumbo levantará vôo e o Lobo Mau ficará muito bravo e fará nossa casa voar pelos ares!"
No começo, parecia que uma enorme massa de ar se aproximava da China, depois a inquietação se transformou em uma deliciosa alegria, quando as nuvens negras se converteram em uma infinidade de pipas. Pipas negras. Todas parecidas. Todas ostentando os traços hilários do rato mundialmente célebre. Não, não eram pipas...
"Balões!", exclamou o vice-ministro das Relações Culturais Exteriores.
"Milhões de balões flutuando docemente nos céus de toda a China!"
"Engraçado", murmurou Xian Bai, "mas eu não..."
"Engraçado", berrou o vice-ministro, que se pôs a vasculhar o bolso e tirou uma versão murcha do objeto aparentemente ofensivo. "Em um instante, eles murcham e ficam do tamanho de uma carteira de um miserável. E com alguns sopros voltam a ficar cheios! (...) Entendeu o que é, imbecil?"
Xian Bai contemplou perplexo sua cara sorridente. (...) No lugar da tradicional bola preta, parecia que surgira uma espécie de circuito eletrônico integrado...
"Isso", disse o vice-ministro, esfregando o nariz do Mickey no de Xian Bai, "isso é uma antena satélite de televisão!"
O século 20, século da ideologia, estava quase terminando; o século da grana apontava seu focinho e se, provavelmente, o espírito do presidente Mao teria se revoltado com o espetáculo dos balões, o de Deng Xiaoping certamente o teria aprovado, pensou Xian Bai.
Afinal de contas, como o próprio Lênin destacara, não podemos fazer uma revolução sem quebrar ovos, embora neste caso as receitas usuais do "Pequeno Livro Vermelho de Mao"...
Xian Bai foi mais uma vez enviado para Anaheim a fim de afrontar os lacaios de Mickey. Dessa vez, no entanto, foi de vôo charter, tarifa com desconto, e ficou em um hotel sinistro de Santa Ana.
Quando finalmente conseguiu atravessar as diferentes camadas burocráticas que protegem a vice-presidência, viu-se tratando, no departamento jurídico, com o que os nativos apelidam de um "Engravatado", um tipo de olhar duro, ridiculamente enfiado em um terno e de óculos com armação de ferro.
"Nenhuma lei internacional, nenhum tratado, nenhuma convenção foi violada", descarregou ele em cima de Xian Bai. "Os balões-antenas foram lançados no espaço aéreo internacional."
"E foi por acaso que eles se concentraram em massa sobre a China?"
"É a mão de Deus! Você sempre pode ir atrás do papa e clamar por justiça, suponho -posso até lhe deixar o cartão de visitas de meu cunhado-, mas você não ganhará nada com isso..."
"Mesmo se o único canal que os balões-antenas captam é Disney Channel? E por que ele começou a transmitir em mandarim e em cantonês?"
"O satélite está em órbita no espaço internacional. Temos o direito de transmitir o que quisermos, na língua que bem entendemos!"
"Mas a lei proíbe os chineses de possuírem antenas parabólicas. A lei proíbe os chineses de assistir a transmissões estrangeiras!"
O engravatado lançou-lhe um sorriso de crocodilo, como uma homenagem à arte dentária perfeita de Beverley Hills: "Isso é problema seu! Nosso problema é sua recusa em nos autorizar a exibir a Grande Marcha na China e o roubo dos lucros obtidos com os produtos derivados do merchandising e dos templos do Panda."
O sorriso desapareceu, mas ele, o crocodilo, estava sempre ali. "E enquanto nosso problema não for resolvido, até a data de lançamento internacional", emendou o engravatado, "'seu problema só vai se agravar!"
"Se agravar...?", balbuciou Xian Bai. Como? Não havia nenhum meio de confiscar os milhares de balões; assim que a polícia se aproximasse, as pessoas iriam murchá-los e escondê-los para, passado o perigo, enchê-los de novo. Milhões e milhões de chineses assistiam às transmissões da Disneyworld, desenhos animados de curta e longa metragem, trailers sem fim da Grande Marcha, inúmeros spots das promoções obsessivas para os templos do Panda. A exigência de abertura da China aos lacaios de Mickey beirava o frenesi.
Pelas últimas pesquisas de opinião, 41 milhões de chineses já estavam convencidos de que Mao Tse-tung tinha, ao nascer, uma pele em preto-e-branco.
"Isso vai piorar ainda mais", sussurrou o engravatado. "Vamos colocar nossas antenas à disposição do dalai-lama. Poderíamos também difundir clipes do massacre da praça Tian Anmen com um fundo musical dos Nine Inch Nails. Podemos submeter seu povo a reprises dos velhos filmes de Charlie Chan. E, se nada disso funcionar, resta-nos sempre uma última e decisiva arma" (...)
"Exibimos os 20 primeiros minutos da Grande Marcha em sinal aberto, depois cortamos a sequência, obrigando assim todo chinês a comprar decodificadores caros para vê-la."
"Você acredita mesmo que algum governo, qualquer que fosse, conseguiria depois de tudo isso conservar ainda o mandato dos céus?"
"Nada de tramóia com o Mickey, hum...," suspirou Xian Bai. (...)

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