São Paulo, terça-feira, 22 de abril de 1997
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A indispensável consolidação do Mercosul

RICARDO SEITENFUS

A atual crise argentino-brasileira é mais um episódio entre os constantes desencontros dos dois países na construção do Mercosul. Os compromissos assumidos geram tensões de natureza distinta e fazem parte de uma agenda positiva, se comparados aos conflitos vivenciados em períodos anteriores (Itaipu, corrida armamentista, definição de fronteiras e de zonas de influência).
As oposições entre os dois países seriam menores, apenas típicas de uma 'mise-en-scène' ou, ao contrário, seriam sintomas de problemas mais profundos?
Certamente, trata-se de discordâncias de conteúdo, que encontram descabida ampliação tanto na propalada arrogância de certos servidores públicos brasileiros quanto no pouco tato do embaixador argentino, Diego Guelar.
Os dois principais parceiros do Mercosul já haviam demonstrado dificuldade diante da nova realidade de suas relações econômicas externas, sobretudo na coordenação da política macroeconômica.
A Argentina impôs medidas protecionistas pontuais para certos produtos e uma taxa de estatística para as importações, maneira sutil de impor barreiras à circulação dos produtos no âmbito do Mercosul. Além disso, o presidente Menem mencionou, em várias oportunidades, o interesse da Argentina em fazer parte do Nafta.
O Brasil, por sua vez, protagonizou os episódios da indústria automotiva -ainda não resolvido-, dos brinquedos, dos fármacos e agora do crédito às importações, cujo regime especial e provisório concedido aos sócios não resolve a questão, somente adia a crise.
Caso não surjam fórmulas para prevenir os futuros conflitos, normais num processo integracionista, o Mercosul conhecerá desgastes ainda maiores. O primeiro ponto a ser esclarecido entre os sócios é a interpretação uniforme dos compromissos assumidos no âmbito do Mercosul. Cada país não pode continuar a ler de maneira diferenciada os arranjos coletivos.
Em seguida, é imprescindível a realização de uma conferência diplomática objetivando a consolidação da integração do bloco. Nela seriam estabelecidos os pontos pacíficos e incontestes já alcançados.
Em terceiro lugar, deveria ser abandonada a retórica ufanista e enganadora, utilizada pelos operadores e políticos responsáveis pelo processo.
Finalmente, perante as dificuldades comerciais, deveriam ser intensificados os esforços nas outras áreas de cooperação (cooperação jurisdicional, infra-estrutura, segurança etc.).
Além dos inegáveis avanços do comércio interbloco, da criação da confiabilidade entre os parceiros, da credibilidade externa, da consolidação da democracia e da inimaginável cooperação militar, o Mercosul deve ser também um instrumento de luta contra o subdesenvolvimento e a exclusão social. Caso os desequilíbrios sociais, exacerbados pelo crescimento do desemprego, não sejam enfrentados, cada sócio se comportando de maneira independente, o Mercosul terá seu futuro hipotecado.
Às vésperas da Cúpula da Alca, em Belo Horizonte, nada seria mais contrário aos interesses da região do que um Mercosul se apresentando de forma dispersa. Espera-se que o encontro entre os presidentes dos dois países possa apontar na direção correta.
Esse contexto desaconselha suscetibilidades pessoais, pois o Mercosul é atualmente a única forma organizada da América Latina que pode apresentar-se como alternativa às propostas e pressões dos Estados Unidos.
Perdendo esse reduzido poder, estaremos na mesma situação do México quando ingressou no Nafta. Essa submissão seria fatal para um país como o Brasil, que não pode pretender ser tão somente um apêndice de Washington.

Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 48, doutor em relações internacionais pelo Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais de Genebra (Suíça), é professor titular de relações internacionais e coordenador do mestrado em integração latino-americana da Universidade Federal de Santa Maria (RS). É autor de "Uma História Diplomática do Brasil" (em colaboração com José Honorio Rodrigues) e "Manual das Organizações Internacionais".

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