São Paulo, quarta-feira, 23 de abril de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O assentamento da General Motors

ELIO GASPARI

O governador Antonio Britto, do Rio Grande do Sul, fechou negócio com o maior assentamento em curso no país. Trata-se de assentar uma fábrica da General Motors em Gravataí, na área metropolitana de Porto Alegre.
Numa época de dinheiro curto, Britto decidiu colocar R$ 335 milhões (duas vezes o total dos investimentos do Estado em 1996) no assentamento da GM. Ele espera que disso resulte a produção de 180 mil automóveis por ano. A GM desmente esse número. Fala em 120 mil em 1999, sem compromisso. Britto promete a criação de 200 mil empregos diretos e indiretos. A GM só se compromete com seus 1.300 postos de trabalho.
A engenharia financeira do assentamento, conhecida por conta de uma liminar da Justiça gaúcha, é um pouco complicada, mas pode ser resumida ao seguinte:
1) O governo do Rio Grande do Sul empresta à GM todo o dinheiro (repetindo, todo o dinheiro) necessário à sua instalação física. Da primeira estaca à fitinha verde-amarela da inauguração. São R$ 335 milhões. O cheque equivalente a esse ervanário já foi assinado. A GM resgatará o empréstimo a partir de 2002, em dez anos. Pagará juros de 6% ao ano, sem qualquer indexação. (Os empréstimos mais camaradas do BNDES saem pela inflação, mais 16% ao ano.) É dinheiro dado.
2) O governo do Rio Grande do Sul paga todas (repetindo, todas) as obras de infra-estrutura para a construção da fábrica e mais os acessos rodoviários e portuários. São R$ 60 milhões, só em Gravataí.
3) Em 1999, quando a fábrica operar, o governo do Rio Grande do Sul financiará o capital de giro da GM. Durante 15 anos, emprestará o equivalente a 9% do faturamento da empresa. Coisa de R$ 100 milhões por ano, sem juros nem correção. Mais dinheiro dado.
4) Em 2014, quando a GM tiver devolvido o empréstimo para construir a fábrica, começará a receber de volta tudo o que pagou. (Repetindo: receber de volta tudo o que pagou.) Será reembolsada com créditos fiscais, em prestações equivalentes a 5,5% de seu faturamento bruto.
5) Tudo o que a GM receber emprestado, será devolvido em reais, sem qualquer indexação. Ou seja, o governo do Rio Grande do Sul pagará uma espécie de multa inflacionária. Tudo o que a GM vier a receber como reembolso será calculado em dólares. Ou seja, a GM fica livre do risco inflacionário do real.
Essa engenharia financeira vale para a GM e para todas as indústrias de autopeças que ela venha a assentar em Gravataí. Para não complicar a explicação, ficando-se só no assentamento da GM, resulta que o governador Antonio Britto resolveu pagar, em dinheiro, isenções tributárias e obras físicas, algo como R$ 500 milhões. (Admitindo-se que as obras saiam por R$ 100 milhões e os juros negativos por R$ 65 milhões, para se chegar a um número redondo, porém conservador).
Cada posto de trabalho direto criado na GM custará US$ 385 mil. É verdade que serão criados empregos indiretos, mas é verdade também que a indústria automobilística tirou 32º lugar numa classificação que mediu a capacidade multiplicadora de mão-de-obra de 41 setores da economia gaúcha. Os três primeiros colocados foram: agricultura, confecção e mobiliário.
O protocolo assinado pelo governador Britto é um prodígio de ambiguidade quando se refere às obrigações da GM. Isso para não mencionar o item 16, que concede facilidades e descontos tributários para que a GM venha a importar veículos. Ganha um Corsa quem conseguir explicar o que uma fábrica de carros em Gravataí tem a ver com a importação de veículos fabricados nos Estados Unidos.
O assentamento de Britto não é uma excentricidade. É apenas um exagero, talvez um dos maiores do mundo. Ele bateu o recorde dos US$ 170 mil por emprego, pagos nos Estados Unidos, pelo Estado do Alabama, à Mercedes Benz. (Por causa disso o governador não se reelegeu.) O Ohio deu US$ 16 milhões à Honda, o Kentucky, US$ 125 milhões à Toyota. A Carolina do Sul pagou US$ 79 mil por emprego à BMW e o Tennessee, US$ 11 mil por empregado à Nissan.
Não há no contrato qualquer cláusula que obrigue a GM a produzir determinada quantidade de carros por determinado espaço de tempo. Parece detalhe, mas levando-se em conta que na década passada essa mesma empresa abandonou a cidade de Flint, no Michigan, devastando-a, a cautela não faria mal. Pode-se argumentar que a velha e gloriosa planta de Flint estava obsoleta, mas a da Volkswagen na Pensilvânia não estava, e ela deu o fora depois de ter recebido milhões de dólares em incentivos. Por mais de dez anos a GM recebeu benefícios fiscais em Ypsilanti, no Michigan, até que resolveu se mudar.
FFHH diz que, além do mofo e da saúva, os males do Brasil são o Estado paternalista e a falta de recursos. Com os R$ 500 milhões que o governador Antonio Britto quer gastar no assentamento da GM ele poderia instalar 15,8 mil famílias de agricultores (a R$ 31,6 mil por família).
É provável que os gastos com todos os assentamentos e incentivos a todos os imigrantes europeus que chegaram ao Rio Grande do Sul no século passado não tenham chegado a US$ 500 milhões. Foram investimentos no povo, um povo que a Europa expulsou e a América recebeu, construindo uma história de sucesso que só resultou em decadência bem mais tarde, quando o povo voltou a ser um estorvo para os governantes.

Texto Anterior: O mundo inteiro
Próximo Texto: Sem-terra planejam 'sacudir o Nordeste'
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.