São Paulo, quarta-feira, 23 de abril de 1997
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Sem fugir à regra

JANIO DE FREITAS

A mesma impunidade que é tida, na maioria das opiniões divulgadas, como causa da audácia bárbara que incendiou o pataxó Galdino, na capital da impunidade, só deixará de beneficiar os cinco assassinos confessos se forem adotadas providências urgentes para reverter a tendência já adotada pela polícia de Brasília.
Só a dispensa de exame toxicológico, quando todos os fatos fariam suspeitar do uso de droga pelos criminosos, bastaria para negar a boa-fé ou a capacidade das autoridades policiais de Brasília. E talvez as duas, a julgar pela explicação do delegado Angelo Neto, que tem o elevado cargo de chefe de gabinete da Direção da Polícia Civil de Brasília: "Eles não davam sinais exteriores de uso de drogas. Se pedíssemos o exame, feriríamos o direito das pessoas". A explicação do delegado, porém, não poupou outro gênero de sinais exteriores.
A precaução de isolar quatro dos assassinos, para evitar que outros criminosos os sentenciassem à sua maneira também bárbara, foi seguida de uma gentileza suspeitamente injustificável: a transferência dos assassinos em três automóveis da direção da polícia, e não nos carros para isso preparados.
Essas evidências materiais são, no entanto, apenas o cenário adequado para os conceitos muito reveladores que as duas maiores autoridades policiais emitiram sobre o caso. Ao admitir que logo os assassinos possam ter sua prisão relaxada, para responder ao processo em liberdade ("são primários, com residência certa e sem antecedentes criminais"), o próprio diretor da Polícia Civil, Teodoro Rodrigues, torna inequívoca a maneira como o crime e os criminosos estão sendo vistos (e por isso tratados) pela polícia brasiliense: "De certo modo, eles estão aqui por burrice, por brincadeira".
O que esperar da condução de um inquérito em que a mais alta crueldade homicida se reduz, por antecipação do responsável maior pelo inquérito ainda mal iniciado, a uma "brincadeira" decorrente de nada mais do que "burrice"?
Os conceitos reveladores do delegado Teodoro Rodrigues não são pessoais, apenas seus. Seu chefe de gabinete, o já citado Angelo Neto, não se limita a corroborar a admissão da liberdade próxima dos assassinos, a qual "o advogado obterá sem problemas", na sua opinião ou sugestão, "assim que passar o 'frisson"'. Mais do que seguir o chefe, Angelo Neto tem ainda um arcabouço ideológico para sustentar sua tese (e suas, por certo, atitudes de homem coerente):
"Se o Rainha responde em liberdade, o mesmo se aplica a esses garotos". Por ser um dos líderes do movimento dos sem-terra, Rainha é igualado pela autoridade policial de Brasília a um incendiário-assassino. Mas não completamente, como atesta o complemento, recolhido também pelos repórteres Ana Paula Macedo e Marco Antonio Moreira, do alto representante da isenção policial: "Só que o Rainha está solto porque virou herói e esses rapazes foram rebaixados à condição de criminosos". Rebaixados, só isso. Nem ao menos SE rebaixaram. Foram, obviamente por terceiros, rebaixados apenas por uma "brincadeira" sugerida pela "burrice".
A impunidade não é só a inexistência de pena, mas também a aplicação de pena leve quando a apropriada, prescrita pelos códigos para a proteção da sociedade, seria dura. Nem é a impunidade atribuível só ao Judiciário, como em geral se divulga. É nos inquéritos policiais deformados que, na maioria das vezes, a impunidade é assegurada. Prova de que as polícias podem ser tão hediondas quanto certos crimes.
Não é o caso da polícia de Brasília. Nela acontecem práticas hediondas. Apenas, em certos casos, brincadeiras. Por burrice, dizem.

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