São Paulo, quarta-feira, 23 de abril de 1997
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Direita festiva celebra aniversário de Campos

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Roberto Campos comemorou 80 anos na semana passada, sem ter muito do que se arrepender. Criticado e detestado durante a vida inteira, esse liberal impenitente se encontra na confortável situação de ver mais e mais pessoas admitindo que "no fundo, ele é que estava certo."
Roberto Campos perdeu seus inimigos, seus algozes, e tudo é festa; mas ele já adquiriu certo hábito de vítima, um tom insistente e monótono na voz, um ar de queixa, uma magreza de derrotado.
Durante muito tempo se falou em "esquerda festiva"; quando ser de esquerda era moda, aderia-se às idéias de Marx, Lênin ou Trótski numa cobertura em Ipanema, sem nenhum compromisso real com a revolução.
Há hoje uma direita festiva. Caracterizá-la não é difícil. Tudo o que um sujeito de direita festiva pensa, diz e faz é de direita, mas ele não leva seu direitismo às últimas consequências. É mais um sujeito "esclarecido"; acha certo tudo o que Roberto Campos diz, mas com uma ressalva -a de sempre ter discordado de Roberto Campos.
A direita festiva adora o Brasil, o que significa incluir, nessa entidade vaga chamada "Brasil", tudo o que é bom e tudo que é ruim na sociedade em que vivemos. Bicheiros, traficantes, latifundiários, políticos do PFL são autenticamente brasileiros; a PM de Diadema é culturalmente autêntica, as novelas da Globo retratam "fielmente" a realidade do país...
Claro que a direita festiva não é a direita de verdade e assim condena o PFL, a PM de Diadema etc. Mas condena festivamente: isto é, carnavaliza sua condenação. Felicita o caos e a barbárie reais como se fossem expressão artística de um autor de gênio, o "Brasil". Qualquer massacre, qualquer escândalo, qualquer miséria será pretexto para uma crise de nervos, mas essa crise de nervos funciona, na verdade, como orgasmo estético.
Essa é a versão mais "radical" da direita festiva. É a versão -sinto dizer isso de um colega a quem admiro- de Arnaldo Jabor. Há outras, com respectivas carapuças.
Uma direita festiva mais refinada, menos glauberiana, é festiva por obra e graça de seu próprio encontro com o poder. Trata o presidente Fernando Henrique Cardoso por Fernando. Poderia (mas não chega a tanto) chamar Paulo Maluf de Paulo. Sabe que o Fernando tem de fazer concessões, mas sabe que o Fernando está no caminho certo, ou melhor, que não há outro.
O que há de festivo, nesse caso, é a convivência com os segredos de Brasília, que ninguém entende muito, e o que há de direita é a concordância quanto "ao caminho certo". Mas a concordância importa menos do que a convivência pessoal. O frisson de uma fofoca palaciana equivale à conquista do poder.
A direita festiva tem também uma versão internacionalizada, que se marca pela abertura às importações. É interessada em gastronomia. Pimentões belgas, champignons dinamarqueses, trufas brancas não sei de onde assumem a função de zelar pela "educação dos cinco sentidos" de que falava Marx. O privilégio liberta, a culpa atrapalha a digestão.
A versão melancólica da direita festiva, por sua vez, admite que torcia pela esquerda, mas que o melhor é desistir dessas tentativas todas. Aliás, não há nada mais ridículo do que ser um dinossauro de esquerda. Então, que todos se danem: o povão não vota em Maluf? É mais ou menos o que eu acho, infelizmente.
Voltando a Roberto Campos. Ele recebeu um telegrama de FHC pelo aniversário. Não teve outra alternativa que não a de agradecer com ressalvas. Para Roberto Campos, o governo não é liberal o bastante. Roberto Campos consegue, assim, manter-se numa posição minoritária, que sempre foi aquilo que o manteve vivo. E FHC consegue, assim, manter-se distante de Roberto Campos, livra-se de ser tão "neoliberal" quanto dizem.
Mas tudo isso é banalidade. A pergunta mais importante é: como Roberto Campos aguentou por tanto tempo? De onde tirou energia para ser o que foi?
O que ocorre com Roberto Campos é diferente. Esse ex-seminarista não aspira ao perdão. Quer se manter como pecador. Mas pecador racional, intransigente, lógico. O tom monótono na voz, a frieza de réptil no olhar, a cor de parafina na pele esburacada sinalizam o asceta. Quer ser objeto de martírio.
Esse homem obcecado pelo liberalismo é também um obcecado por sexo. Nunca deixa de empregar metáforas cafajestes quando advoga um ponto de vista importante em economia. Dizia que uma negociação dura da nossa dívida externa presumiria, da parte de nossos embaixadores, um estado extremo de excitação sexual.
Lendo suas memórias ("A Lanterna na Popa", Topbooks), surpreendo-me com o priapismo do autor. A primeira página logo fala das pernas "substanciosas" de uma húngara, e a última afirma: "Nunca fui veado, nem atleta sexual". Com efeito, entre uma coisa e outra, o liberalismo de Roberto Campos se situa num terreno muito específico.
O texto das memórias oscila entre a qualificadíssima, brilhante análise da política internacional, dos planos econômicos etc., e a sabedoria mundana, pronta a ver em cada pessoa um vício, uma tara, um pecado. Fulano "tinha robusta intimidade com a garrafa". O amigo de juventude era epiléptico e violento; outro ganhava dinheiro fazendo sexo com veados, o que Roberto Campos define, com diversão erudita, como "fornicatio in vasu improprio".
Para quem sempre acreditou que o interesse público está nos vícios privados, como diz a fórmula de Mandeville, o liberalismo não deixa de ser um prejuízo do ponto de vista do julgamento moral. Não há como julgar, mas Roberto Campos foi julgado e quer julgar.
identifica o interesse privado essencial -o lucro- com o bem público. Mas com isso o privado se torna público. E ele tem de resguardar, tem de viver a dignidade do mundo privado: esse se torna, então, o palco do pecado. A fascinação de Roberto Campos pelo vício é teológica. Explica até mesmo seus inimigos: são cegos, são vítimas do "estatocratismo", da "dinossaurofilia"; são "assistencialóides burocratófilos ou coisa parecida". Sua vontade tipologizante, sua imaginação rotulatória, é uma reedição de Krafft-Ebbing ou de um manual dos inquisidores no mundo ideológico. Ele está lutando contra o que considera a "tara" do nacionalismo, a "perversão" da esquerda.
O espírito moralista, dominicano, inquisitorial de Roberto Campos vai contra, assim, o espírito da direita festiva que comemora seu triunfo. Esse asceta sofre com o oba-oba atual, assim como se afastava, sem grande coragem, aliás, dos chamados "excessos" do regime militar e se aproximava, com grande alegria, aliás, dos cafajestismos de uma direita que deixava de ser carola para gozar a vida.
Ele queria a democratização em 68. Que importa? Não lutou por isso. Deixou a irracionalidade, a estupidez militar e nacionalista seguirem seu curso. No fundo, parece querer que a burrice alheia, o vício alheio, e a vilania alheia continuem a existir. Assim se purifica.

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