São Paulo, sexta-feira, 25 de abril de 1997
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'Marienbad' nos 60, 'Estrada Perdida' nos 90

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Ninguém se sinta complexado por não entender muito bem o que acontece em "A Estrada Perdida" (Lost Highway). A estrada concebida por David Lynch é feita mesmo para que ali não só os personagens, como os espectadores, percam a direção.
Mas todo mundo terá o direito de se sentir surpreso, por várias razões, com este filme desconcertante, que parece estar para os anos 90 como "O Ano Passado em Marienbad", de Alain Resnais, estava para os 60.
Há diferenças, claro. Para começar, "Marienbad" não era um fenômeno imprevisível, na inquietação criativa dos 60. Os 90, ao contrário, têm se caracterizado por um conservadorismo narrativo que acostumou o público a filmes de sentido evidente -quando não rasteiro, o que é mais habitual.
Em segundo lugar, David Lynch tem ancorado a maior parte de seu trabalho na bizarria da moda e numa espécie de morbidez prêt-à-porter, que entra nos filmes como que para significar a sintonia do diretor com seu tempo.
"A Estrada Perdida" vai em outra direção. O problema é: em qual? De início, tudo parece muito bem: o músico Fred Madison (Bill Pullman), em crise conjugal, começa a receber fitas de vídeo em sua casa, das quais se pode inferir que ele e sua mulher, Renee (Patricia Arquette), vêm sendo filmados sigilosamente.
Uma dessas fitas mostrará, por fim, Fred ao lado da cama, com o corpo de Renee destroçado. A fita será a prova do assassinato. Fred é preso e condenado à morte.
Até aí, tudo já intriga o bastante, mas parece sugerir um pesadelo, em que registro em vídeo, realidade e alucinações se sobrepõem.
As coisas ficam realmente estranhas quando os guardas da prisão, ao olharem o interior da cela, vêem não mais Fred, mas Pete Dayton (Balthazar Getty).
Quebra-cabeça
No instante seguinte, Pete está em liberdade, e o acaso coloca-o em contato com uma bela mulher, Alice. Ora, Alice não é outra senão Patricia Arquette (só que loira, em vez de morena).
Desde então, podemos acreditar numa realidade alucinatória, em que Fred se converte em Pete, e Renee em Alice.
À medida que o filme se desenvolve, percebemos que não é tão simples assim, mas que Lynch organiza sua ficção jogando com as expectativas do espectador. No entanto, não existe um quadro "real" e outro "onírico" construídos simetricamente, ou em linhas paralelas.
O que existe são conjuntos de sinais que sugerem um sentido, uma direção, um fio que podemos acompanhar. Mas, como um quebra-cabeça com algumas peças danificadas, em nenhum momento o jogo se encaixa mansamente.
Ou seja, o sentido não se deixa domesticar, de maneira que em momento algum o espectador se acomoda. É como se Lynch seguisse a máxima de Antonin Artaud: sentido dado é sentido morto.
Em "A Estrada Perdida", todos os nossos referenciais (realidade, alucinação), aquilo que nos leva a vincular o sentido do filme a uma experiência passada, é sistematicamente varrido.
Em troca, "Estrada" nos oferece a oportunidade rara de observar o espetáculo como experiência em si, desenrolando-se à nossa frente e também em nós. Experiência da perda, do deslocamento, da agonia, do desentendimento.
Lynch propõe um desafio inusitado com este filme, não há dúvida, mas não maior do que as incertezas, dúvidas e desafios que compõem a realidade cotidiana e a necessidade que cada um experimenta de compreender um mundo que se abre a nós como clareza e evidência, para logo em seguida se exibir como opacidade e mistério.
David Lynch talvez tenha merecido em outros momentos que se colocasse, ao lado de seu nome, um vasto ponto de interrogação sobre seus reais méritos. Com "Estrada", a interrogação desvia-se para outro ponto.
Como toda empreitada formalista, pesa sobre ela a dúvida que Eric Rohmer formulou sobre "Marienbad": "É uma porta que se abre, mas que não dá em parte alguma".
O tempo dirá se "A Estrada Perdida" é uma obra-prima do fim de século ou um exercício de brilho. A primeira hipótese parece mais pertinente. Em todo caso, Lynch fez um filme impressionante.

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