São Paulo, sexta-feira, 25 de abril de 1997
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Obra usa luz e som para criar outra dimensão

JOSÉ GERALDO COUTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"I'm deranged", canta David Bowie no final de "A Estrada Perdida". É assim também -desconcertado- que o espectador sai do cinema, depois de duas horas de pura alucinação.
Para o crítico, a melhor surpresa é ver que o talentoso David Lynch, depois de flertar perigosamente com a impostura do "cult" na virada dos anos 80 para os 90, resolveu fazer cinema de verdade.
Em lugar dos cacoetes e fetiches de apelo imediato junto a um certo público moderninho (quem não se lembra da loucura de butique de "Veludo Azul" e "Coração Selvagem"?), "A Estrada Perdida" experimenta um expressionismo de novo tipo -ou, se não novo, pelo menos radicalizado a um ponto inaudito.
Nada de contraluzes em ambientes esfumaçados, nada de néons de beira de estrada, de visual retrô nas roupas e automóveis, de inconsequentes citações do cinema "noir".
Em vez de todo esse lixo estilizado, Lynch fez um filme-pesadelo que subverte o cinema pastoso de hoje em dia, não apenas pela coragem com que desarticula a cada momento a continuidade do enredo, mas sobretudo pela aposta radical nas possibilidades expressivas da luz e do som.
Pois "A Estrada Perdida" é um filme que arrebata o espectador, antes de mais nada, como uma insólita experiência sensorial. Som e luz são manipulados de maneira a criar a sensação física de uma outra dimensão.
Um exemplo: na festa em que Fred Madison (Bill Pullman) encontra o homem misterioso que diz estar, naquele mesmo momento, em sua casa, todo o burburinho ambiente cessa bruscamente, deixando no ar apenas o estranho diálogo dos dois.
Em toda a primeira metade do filme, nunca há propriamente silêncio: uma vibração surda, como o ronco de um avião ao longe, mantém sempre retesado o nervo do suspense.
Quando Fred é vitimado por alucinações, na cadeia, o zumbido da lâmpada de sua cela atinge uma intensidade insuportável, como costuma acontecer nos estados alterados de percepção.
A iluminação também é diabolicamente precisa. Fred discute com a mulher e desaparece por um instante num canto escuro do quarto. Quando volta à luz, parece ter retornado de outro mundo.
A reforçar o transe, a música pulsante de Angelo Badalamenti, ajudada por uma escolha certeira de canções, como a surpreendente "Insensatez", de Tom Jobim.
Para gostar desse filme, é necessário deixar na porta do cinema toda esperança de "entender". O sentido, aqui, é uma estrada perdida. Não por acaso, quem tenta explicar tudo é sempre a polícia. Deixemos a ela esse serviço sujo.
Os pesadelos, mesmo quando não os entendemos, são essenciais para a nossa saúde.

Filme: A Estrada Perdida
Produção: EUA, 1996
Direção: David Lynch
Com: Bill Pullman, Patricia Arquette, Balthazar Getty
Quando: a partir de hoje nos cines Olido 1, Belas Artes e circuito

Texto Anterior: 'Marienbad' nos 60, 'Estrada Perdida' nos 90
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