São Paulo, domingo, 27 de abril de 1997
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Pernas e beijos arrebatadores

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Não é impossível que Humberto Mauro tenha se dedicado no fim da vida a reescrever sua biografia ou, ao menos, a colocar em relevo certos traços e toldar outros, de maneira a legar para o futuro a imagem que julgava mais conveniente.
A imagem que se disseminou do diretor liga-se à terra, ingenuidade, pureza, natureza, como se Mauro tivesse procurado assegurar seu lugar de "precursor" na história do cinema brasileiro, recorrendo aos signos da ruralidade como iguais aos da brasilidade.
É de 1953, salvo engano, a célebre definição que consolida esse olhar sobre sua obra: "Cinema é cachoeira". Definição enigmática, pois o que é, afinal, cachoeira?
Fiar-se na palavra de Mauro seria ignorar que o cinema, o seu cinema, não é só cachoeira, em todo caso. E a idéia de movimento contida nas corredeiras que soube filmar tão bem está longe de esgotar o repertório maureano.
Que se observem as pernas femininas dos primeiros filmes, como "Brasa Dormida" ou "Sangue Mineiro". Elas se movimentam como cachoeiras, como saias balançando. São objeto de uma contemplação extática, boquiaberta, em que a forma e o movimento sugerem a irrupção do desejo sexual como constitutivo do drama, da beleza e da miséria humanos.
O feminino em Mauro dialoga com as formas da natureza, que tanto o agradavam -isso também é inegável. Da cachoeira às montanhas -imagem análoga à exuberância das formas femininas- inúmeras figuras maureanas remetem ao feminino como centro de suas mais caras preocupações.
A contemplação da natureza nunca foi um fim do cinema de Mauro, nem a natureza que aparece neles exclui a sexualidade. Ao contrário, ela é abertamente sexualizada. Não será preciso lembrar mais que a cena da serpente no Éden, em que se beijam os protagonistas de "Brasa Dormida", para demonstrá-lo.
Humberto Mauro foi originalmente um técnico, um eletricista, alguém que apreciava a intervenção humana sobre a natureza.
Talvez a cachoeira seja efetivamente o mais sintomático dos elementos da natureza em seu cinema, à medida que é o correr das águas que produz movimento e energia. Existe um encontro entre água, energia, transbordamento sensual e transformação que é evidente em seus filmes, sobretudo nos de juventude.
Ao contrário do "Tabu" de Murnau (também de uma sensualidade desconcertante), o jovem Mauro não observa uma natureza intocada e intocável. Sua observação já é transformação, o mistério que define a passagem do estado de natureza ao de cultura.
Nesses primeiros filmes, ao menos até "Ganga Bruta", estamos sempre na iminência de uma tragédia organizada em torno da tensão entre sexualidade e cultura.
Não que isso se altere tanto assim nos longas da maturidade, como "Argila" e "O Canto da Saudade". Neste, Mauro volta a figurar como ator, mas agora, na pele do coronel Januário, as antigas tendências vilanescas tornam-se vontade de organização (política) e de tutela sobre o desejo sexual dos outros. Em todo caso, o triângulo amoroso está presente nos dois filmes. E, com certeza, "O Canto da Saudade" reveste-se de um aspecto trágico de que os filmes de juventude passavam ao largo.
Passemos pelo uso evidente -talvez evidente demais- de símbolos fálicos em "Ganga Bruta", filme em que a sequência mais memorável é a de explosão de animalidade num botequim.
O mastro e a terra
O caráter fálico é igualmente claro, embora muito mais decisivo, em um filme de que as mulheres são ausentes (por razões óbvias), como "O Descobrimento do Brasil", em que velas e mastro da caravela de Cabral figuram todo o esplendor de uma ereção, no momento em que os portugueses avistam a terra.
O roteiro do "Descobrimento", sabe-se, é de uma fidelidade canina à carta de Pero Vaz de Caminha. Se observarmos esse filme apenas do ponto de vista do roteiro, seu interesse é restrito. A mise-en-scène, no entanto, contraria o tom oficial do roteiro, ao orientar-se pela exploração do encontro entre estado de cultura e estado de natureza. É uma mise-en-scène exemplar, uma das melhores do diretor mineiro.
É estranho que Mauro tenha sido, aqui e ali, censurado por criar uma idéia excessivamente cortês dos portugueses e pela visão a um tempo submissa e primitiva dos índios -crítica que Graciliano Ramos fez ao "Descobrimento"-, pois o que dá um lugar único a este filme na história do cinema brasileiro é justamente sua abordagem do encontro entre portugueses e índios.
A fidalguia é, com efeito, um aspecto marcante da representação dos portugueses. Mas toda a ênfase de Mauro tende à composição de tipos essencialmente masculinos. Existe neles não apenas uma aspereza de gestos, como um afã transformador. Trata-se de um grupo ativo, que vem instaurar a civilização, doá-la ao novo mundo.
Os índios, ao contrário, são feminilizados por Mauro: sua característica principal é uma certa fragilidade de modos, uma receptividade que os torna o verdadeiro objeto de conquista (e não a terra recém-descoberta), além de receptáculos de cultura.
Todo o filme gira em torno dessa passagem: do contato à conquista, da abordagem à Primeira Missa, que na verdade não passa de metáfora do casamento entre branco e o índio, civilização e natureza, masculino e feminino.
Assim, a fidalguia dos portugueses do "Descobrimento" é a de um noivo às vésperas do casamento. Não será demais observar como Mauro concilia as notações de caráter sexual e religioso, fazendo da subida da cruz, clímax do filme, uma sequência de rara ambiguidade, em que ao mesmo tempo se erguem o signo da cristandade e o símbolo fálico, masculino, enquanto, do ponto de vista dos índios, o mais marcante ritual em que se envolvem denota o caráter feminino que Mauro lhes atribui -vistos do alto, dançam até formar uma espécie de círculo, como que configurando o local da penetração, um órgão sexual feminino.
É estranho que "Ganga Bruta" seja visto como o filme especificamente influenciado pela psicanálise de Mauro, quando "O Descobrimento" o é de maneira bem mais enfática, na medida em que a direção produz o masculino e o feminino, ao sobrepor, no auge da conquista do Brasil pelos portugueses, as idéias de casamento e cópula do branco com o índio.
*
Humberto Mauro foi um cineasta do desejo, que celebrou o ato amoroso com a mesma intensidade com que filmou a natureza ora dolorosa, ora trágica, ora feliz das relações homem/mulher. Foi o cineasta das cachoeiras e montanhas, sem dúvida, mas tanto quanto o foi das pernas sensuais e dos beijos arrebatadores.
Se esses aspectos de sua obra permanecem um tanto soterrados, é em grande parte porque Mauro colocou ênfase na ruralidade de seu trabalho, em uma espécie de suposta inocência, no antiintelectualismo e mesmo na ingenuidade. Mauro foi, na verdade, um dos mais intelectuais dos cineastas brasileiros, e, com certeza, o mais sofisticado, o que melhor compreendeu as possibilidades poéticas e expressivas de sua arte. Conheceu-as o necessário para cultivar a imagem que lhe parecia convir: a de patriarca generoso de um país ainda infantil. Isso não é inteiramente mentira. Mas a verdade é um pouco maior do que isso.

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