São Paulo, segunda-feira, 28 de abril de 1997
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Muito obrigado, pessoal da Vale

JOÃO SAYAD

Amanhã é uma data importante: vão vender a Vale. Para mim, é uma data cheia de emoções, de alegria e tristeza, como o casamento de uma filha ou a partida de um filho para o exterior.
No caso da Vale, mais tristeza do que alegria. Como se a separação fosse feita com mágoas e ressentimentos, sem a compreensão de que se trata de um novo período da vida.
As estatais brasileiras estão sendo vendidas pelo motivo errado, acusadas de ineficiência e baixos lucros.
Na realidade, podem ser vendidas porque deram certo, cumpriram a missão, fizeram o que tinha que ser feito.
As grandes mudanças e os investimentos mais importantes têm caráter público.
Quer dizer, os benefícios que geram para o país são enormes, mas não são avaliados corretamente pelos mercados nem podem ser cobrados e, portanto, não dão lucros.
Basta pensar nos investimentos militares dos Estados Unidos durante a Guerra Fria.
Quantos conhecimentos científicos e tecnológicos foram produzidos! Quanta incerteza havia no projeto de mandar um homem à Lua! Por isso, tinham que ser feitos pela Nasa e com dinheiro público.
Com o tempo, as tecnologias foram sendo difundidas, a utilização comercial dos resultados foi se tornando possível e hoje temos satélites lançados por empresas privadas.
Na França e na Inglaterra, atrasadas em relação aos EUA, o setor público investiu em avião supersônico, o Concorde, que deu prejuízos, mas deu certo, pois gerou novos conhecimentos na área de materiais, de padronização de embalagens e em outras áreas.
Deu prejuízo para o consórcio, mas imensos benefícios para as indústrias inglesa e francesa.
Atraso
O Brasil é país atrasado. O que é produto tradicional, comercial e portanto da iniciativa privada no país desenvolvido, aqui é um Concorde ou o lançamento de um satélite à Lua.
Foi assim com o aço e com a CSN -como é que o setor privado iria investir em siderurgia nos anos 40 num país que apenas iniciava o processo de industrialização?
E em energia elétrica com tarifas controladas pelo governo? E em petróleo num país que não tinha petróleo? Só mesmo o governo poderia fazer esses investimentos e criar massa crítica, conhecimento técnico e benefícios para o setor industrial e o país.
A maioria dos investimentos estatais deu certo. Erramos no programa nuclear e na Ferrovia do Aço.
No setor privado acontece a mesma coisa, erros e acertos. Vejam o caso dos bancos, recentemente, e de tantas outras empresas que infelizmente não deram certo.
Graças às estatais, hoje temos um parque gerador de energia elétrica cobiçado por todo o setor privado, uma comunidade de especialistas no setor e um levantamento correto do potencial hidrelétrico do país.
Motivos errados
A mesma coisa pode ser dita sobre o petróleo, a petroquímica, fertilizantes, a siderurgia e a mineração. Foram setores implantados pelo setor público e que deram certo. Só porque deram certo é que podem ser privatizados.
Entretanto, a privatização está sendo feita pelos motivos errados e com as justificativas erradas.
A Vale é acusada de não dar lucro. Mas com muito pouco capital próprio conseguiu hoje ter ativos da ordem de US$ 16 bilhões.
Em plena crise do petróleo, depois de 74, foram as estatais que foram induzidas pelo governo a tomar empréstimos internacionais a taxas de até 17% ao ano, quando elas não precisavam de dólares, mas os dólares eram necessários para comprar petróleo.
O Projeto Carajás, por exemplo, poderia ter sido financiado em cruzeiros, mas foi um ótimo pretexto para conseguir empréstimos em dólares.
Jazidas descobertas pelos técnicos da empresa e da antiga CPRM possibilitaram ao país trazer muitos dólares que financiavam a compra de petróleo.
Política sábia
Aliás, a estratégia dos governos militares neste assunto de dólares é muito mais sábia do que a estratégia adotada no Plano Real.
Naquela época, graças às estatais, trazíamos dólares para investimentos que substituíam importações ou geravam exportações, como Carajás, e não para comprar televisões, automóveis para ruas congestionadas ou simplesmente para manter como reservas.
Agora, todos os setores onde ocorreram os investimentos das estatais podem ser privatizados. Já não são bens públicos. Se a CSN diminuir a produção, a Cosipa substitui. Se a Cesp não investir, Furnas pode investir. Por isso, podem ser privatizados.
Poucos dólares
Não é possível justificar a venda por razões de caixa. A privatização não tem trazido dólares para o país.
Somando todas as privatizações feitas até hoje, o montante não chega nem a R$ 6 bilhões e a parte em dólares é muito pequena. No caso da Vale, se entrar US$ 1 bilhão, é muito.
Não dá para pagar nem a conta de turismo do primeiro trimestre do ano, ou seja, não dá para pagar nem as viagens dos brasileiros a Miami. E vamos arrecadar, com a venda, menos do que os lucros da Petrobrás no ano passado.
Última prioridade
As estatais estão sendo privatizadas porque deram certo e não porque o presidente da Vale usou um avião executivo em 1978 ou pagou uma despesa elevada de restaurante em 83 ou porque o diretor financeiro da CST ganhava muito ou por causa de qualquer outro abuso que ocorre tanto no setor público quanto no setor privado.
Finalmente, de todas as estatais, a Vale, do meu ponto de vista, deveria ser a última prioridade. Por que os compradores podem acabar sendo ou concorrentes ou consumidores do minério da empresa, apesar das cautelas tomadas pelo BNDES no processo de privatização.
Mas o que se pode fazer? Faz parte da vida. Só não me conformo que estejam fazendo tudo isso sem entender o que aconteceu. Se entendêssemos corretamente, usaríamos o dinheiro das estatais para outros investimentos que, oxalá, dessem tão certo como os que estão sendo vendidos agora.
Por isso a festa é triste, marcada pela ingratidão. Começa um novo tempo que não aprendeu com o tempo que passou.

E-mail: jsayad@ibm.net.br

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