São Paulo, segunda-feira, 28 de abril de 1997
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A Vale do Rio Doce e o Estado brasileiro

PAUL SINGER

A Companhia Vale do Rio Doce é tão importante que a sua pretendida alienação pelo governo brasileiro dá lugar a diversas discussões, desde as consequências poluidoras do extrativismo e o seu impacto sobre as regiões atingidas até a avaliação da empresa e a forma proposta para sua privatização.
Mas há um aspecto central de toda a questão, que foi suscitado de maneiras opostas por dois importantes articulistas desta Folha (22.4.97).
À p.1-3, o senador José Eduardo Dutra escreve: "A Vale representa um sistema econômico global, com capacidade de estabelecer parcerias, atrair investimentos para o país e desenvolver processos de pesquisa capazes de garantir modernização e avanços tecnológicos, que estão presentes em diversos ramos da atividade econômica, abrangendo o setor mineral, de celulose, de siderurgia e transporte."
À p.2-3, Luís Nassif escreve: "O ponto central da questão é que a Vale não se comporta como empresa pública. Sua lógica sempre foi a de empresa privada. (...) A Vale nunca foi instrumento de política mineral do governo. (...) Nunca governo algum mandou a Vale procurar minério A ou deixar de tirar o minério B - o que caracterizaria o que se poderia denominar de política mineral."
Basta conhecer as características da Vale para saber que as afirmações de Dutra são incontestáveis. Mas, elas perdem todo significado se o que Nassif diz for verdadeiro, isto é, se as parcerias da Vale e os seus feitos tecnológicos tiverem por único objetivo a lucratividade do capital nela investido. Porque, neste caso, não faz diferença alguma quem detém o seu controle acionário: o governo brasileiro ou qualquer consórcio privado.
Em última análise, o argumento de Nassif não é especifico em relação à Vale, mas vale para toda e qualquer megaempresa. Ele se baseia na conhecida tese de que tais empresas são de fato dirigidas pelos administradores em tempo integral, que seriam os únicos a deter coletivamente os conhecimentos exigidos para que as decisões adotadas tenham racionalidade. Esta, em todo caso, sempre teria de ser a da empresa "privada", ou seja, a da maximização do lucro.
A tese da autonomia do que Galbraith chamou de "tecnostrutura" teve o efeito, sem dúvida útil, de romper com a ilusão que as megaempresas são iguais às empresas menores, ou seja, são dominadas e conduzidas exclusivamente pelos proprietários ou por quem os representa. Mas ela não pode ser aplicada ao pé da letra ou sem ressalvas.
Nas megaempresas, o conhecimento relevante está repartido entre uma numerosa e diversificada camada de técnicos e gerentes, cada um dos quais vendo as questões do ângulo particular de sua especialidade e dos interesses particulares do departamento ou diretoria que integra.
Por isso, as tomadas de decisões em megaempresas são frequentemente precedidas de controvérsias e algumas vezes por autênticas lutas pelo poder. Nos choques entre partidários de opções diferentes, cada um representa visões e interesses tanto internos como externos à empresa. Entre os interessados externos costumam estar os acionistas e credores da empresa, os consumidores de seus produtos, os que se beneficiam de certas externalidades e os que se prejudicam com outras.
E as sociedades nacionais, em que a empresa atua. A este respeito, basta observar os ingentes esforços a que se entregam governos nacionais, estaduais e municipais para atrair investimentos de megaempresas, concedendo-lhes toda sorte de vantagens fiscais, financeiras etc.. Um governo que controla uma megaempresa não precisa sangrar o erário para ter prioridade na localização de suas atividades.
Quando a "tecnostrutura" se divide sobre questões que podem ser resolvidas de maneiras diferentes, a decisão final é tomada pela alta direção da empresa, que é constituída precisamente pelos que detêm o seu controle acionário. É por isso e só por isso que o referido controle vale tanto dinheiro.
Se a "tecnostrutura" fosse inteiramente autônoma e se guiasse unicamente pela lógica unidimensional da lucratividade, não seria preciso leiloar o controle acionário da Vale - bastaria vender as ações na Bolsa.
Temos de concluir que a Vale controlada pelo governo federal poderia se comportar como empresa pública. Mas, para que isso se desse, talvez fosse necessária uma melhor representação de interesses nos órgãos decisores da empresa. O que se tornará completamente desnecessário se o controle acionário for entregue a quem tem por interesse único a lucratividade do capital que investiu.

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