São Paulo, terça-feira, 29 de abril de 1997
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Índios disputam sua maior batalha

MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO À MALOCA DA RAPOSA (RR)

A poucos metros do gramado careca, antes de um amistoso, jogadores tomam o caxiri, bebida à base de mandioca fermentada.
"Nos dois primeiros dias, o caxiri dá força, mata a fome e a sede, é uma vitamina", diz o meia João, 37. "A partir do terceiro dia, mais fermentado, fica muito forte, mais que cachaça, e nos deixa tontos."
Mesmo assim, João e seus companheiros bebem o caxiri, antes e depois das partidas, como fazem desde os seis meses de idade. É um hábito -e prazer- secular da tribo macuxi, a maior do Estado de Roraima, com 11.598 integrantes.
O time de João, a seleção de Cantagalo, é um dos 91 que desde o fim-de-semana retrasado disputam o 1º Campeonato das Comunidades Indígenas de Roraima.
É a maior competição exclusiva de índios de que já se teve notícia no futebol do país.
Para seus organizadores, nunca houve, em todo o planeta, nada igual.
Cada equipe representa uma comunidade diferente. Elas ficam entre a serra da Lua, ao sul da capital Boa Vista, e a serra do Sol, na fronteira com a Venezuela, compostas pelas duas maiores nações indígenas do Estado -além dos macuxis, os wapixanas, com população de 3.500 pessoas.
Brancos vetados
Foram escolhidas dez sedes para as partidas, como numa Copa do Mundo. A final será em outubro.
Brancos são proibidos -se alguma equipe se reforçar com um não-índio, será eliminada. O máximo permitido são mestiços, desde que tenham sangue indígena.
Devido às distâncias entre as aldeias, às vezes superiores a 500 km, nem todos os times, mas cerca de 50, participaram da cerimônia de abertura do campeonato, na Maloca da Raposa.
O local, uma vila macuxi de malocas cobertas com palha de buriti, fica 178 km a nordeste de Boa Vista, por uma estrada de terra cortada pelo rio Uraricoera, ou a 248 km, pela estrada que beira a Guiana, quase toda não asfaltada.
Na festa, os índios desfilaram uniformizados ou vestidos como no passado recente, entre a nudez total de antes da chegada dos portugueses a Roraima, no fim do século 18, e o figurino padrão do índio brasileiro contemporâneo, short e sandálias havaianas.
Um dia antes da abertura e dois antes do jogo de estréia, várias equipes chegaram à Raposa, dormindo em redes, nas malocas cedidas pelos anfitriões. Times femininos jogaram um amistoso antes da primeira partida oficial. O futebol é hoje uma das febres culturais entre os índios brasileiros. No ano passado, os Xavantes venceram as Primeiras Olimpíadas Indígenas disputadas por 18 tribos.
Em fevereiro, 300 índios de quatro etnias presentes em São Paulo participaram do 1º Intertribol.
Para o ano que vem, Roraima planeja um mundialito indígena, com a participação também de times do Amazonas, do Pará, da Guiana e da Venezuela.
O futebol foi introduzido nas aldeias por brancos, entre os quais missionários católicos.
O índio Marco dos Santos, pensador da tribo dos fulniôs, no sertão pernambucano, acha que os povos indígenas se apropriaram de um esporte de brancos para afirmar, num aparente paradoxo, a sua própria identidade.
"O índio tenta mostrar, com o futebol, que é melhor do que o branco", diz.
O bisavós paternos de Garrincha, ponta-direita bicampeão mundial em 58 e 62, eram fulniôs.
Na fila do churrasco bancado pelo governo de Roraima na Maloca da Raposa, os atletas uniformizados furavam a fila, passando à frente até de mães com bebês.
Uma antropóloga presente disse que, para os índios, os jogadores são seus novos guerreiros.

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