São Paulo, quinta-feira, 1 de maio de 1997
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Equívocos ecumênicos

ROSELI FISCHMANN

Alguns equívocos cercam o "ensino religioso ecumênico", cuja idéia teria sido aprovada pela CNBB para as escolas públicas brasileiras, conforme reportagem publicada no dia 18 de abril pela Folha, na página 3-7.
Primeiro, é uma violação flagrante da liberdade de consciência e de crença. Se a "atitude ecumênica" é esposada por alguns, não é mais ou menos virtuosa que a não-abertura à busca de pontos comuns entre religiões -é só escolha. Do ponto de vista do Estado, a livre escolha do cidadão deve ser garantida -e isso inclui a não-imposição de certa opção, seja qual for.
Não é também verdadeira a suposição frequentemente invocada de que o ecumenismo significaria atitude de respeito e aproximação entre religiões, formando crianças e jovens mais solidários.
O respeito ao outro independe de existirem pontos em comum entre livres escolhas no campo da consciência e da crença. À educação cabe promover a compreensão de que não é necessário encontrar "denominadores comuns" para que se pratique o respeito mútuo, assim como a compreensão de que cada cidadão tem direito a escolher livremente sua crença, mudar essa escolha ao longo da vida, se assim decidir, e não ter crença nenhuma, se assim ditar sua consciência.
Além disso, o ecumenismo imposto pelo Estado significaria também uma flagrante violação do direito de liberdade de associação. Há religiões, denominações e seitas que não aceitam o ecumenismo, assim como existem pessoas, movimentos e grupos, no interior de cada opção religiosa, que não se dispõem a essa agregação. Tal atitude é também direito de cidadania e não significa, como já vimos, desrespeito à imensa gama de opções presentes neste país.
A própria menção de que "o ecumenismo prevê que sejam estudadas nas escolas as principais religiões existentes no Brasil" traz embutida classificação e priorização que violam o princípio fundamental da Constituição e dos Direitos Universais da Pessoa Humana da igualdade entre os cidadãos. Qual seria o critério para escolha dessas religiões? O espírito desse tipo de escolha fica transparente quando a reportagem da Folha menciona "incluindo o judaísmo e as religiões afro-brasileiras".
Fica evidenciado, conforme mencionado na reportagem, que o ponto crucial é a remuneração dos professores de ensino religioso, incluindo uma "estratégia" por etapas de mudança da LDB: agora se diz que se incluem todos, depois se reivindica a exclusividade. Agora se ameaça "entrar na Justiça"; depois da "conquista" do ecumenismo, mantém-se a ameaça.
As ameaças revelam apenas o conhecimento de que sabem qual seria a decisão judicial. Não seria a favor, sem dúvida, de propostas que violam tantas liberdades, incluindo as de fiéis da própria religião proponente e que não a aceitam -o que é seu direito como cidadãos frente ao Estado laico, ainda que submetidos a uma hierarquia eclesiástica, do ponto de vista de sua escolha religiosa.
Não se trata de criar "duas categorias de professores de escola", mas de atender o significado do sistema jurídico brasileiro, onde "a César o que é de César e a Deus o que é de Deus". O regime de separação Estado-religiões cria a distinção não entre dois tipos de professor, mas entre dois tipos de conteúdo: um, universal, obrigatório para todos os cidadãos em fase de ensino fundamental; outro, facultativo, que depende da escolha e livre manifestação dos pais, responsáveis e do próprio aluno.
A falta de discernimento nesses e em outros pontos, assim como qualquer indução por parte do Estado à escolha garantida pela Constituição, constituirá violação de liberdades fundamentais, o que é incompatível com a formação que se requer da escola pública para a vida democrática.

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