São Paulo, quinta-feira, 1 de maio de 1997
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Experiência coletiva descrita se pulverizou

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Numa das duas epígrafes que abrem "O Que É Isso, Companheiro?", lê-se o seguinte trecho recolhido de Guimarães Rosa:
"Também as estórias não despreendem apenas do narrador, sim o performam: narrar é resistir". Narrar é resistir. Eis a fórmula que resume o ânimo do livro de Gabeira e a época que ele descreve, ao mesmo tempo em que anuncia a distância intransponível que hoje guardamos de ambos -daquele ânimo e daquela época.
Narrar o quê? Resistir a quem? A experiência coletiva, ilusão e solo daqueles anos, pulverizou-se em vidas que foram sendo progressivamente "privatizadas" pela marcha do mundo. É como se estivéssemos privados, para falar como Walter Benjamin no seu ensaio sobre "O Narrador", "de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências".
O inimigo de então, por sua vez, que era ao mesmo tempo "o sistema", "o status quo" e "o capitalismo" -sempre tomados em bloco e como sinônimos-, tornou-se com o tempo um dado de realidade tão incontornável que só resta aos poucos que ainda ousam levantar-se contra sua hegemonia o consolo de uma sala de cinema, onde, sozinhos e no escuro, podem ver o filme de Bruno Barreto e relembrar saudosos da época em que sacrificar a própria vida para mudar o mundo era um belo e romântico ato de heroísmo.
Marx ensina que a história se faz pelas costas e à revelia dos seus sujeitos. Uma maneira de dizer que cada época tem as suas próprias ilusões, das quais ninguém escapa, remando a favor ou contra a maré, tanto faz. Quais eram as ilusões da geração da guerrilha perdida? Algumas são decisivas.
Em primeiro lugar, o impacto da revolução cubana, que, vitoriosa fora dos padrões definidos pela cartilha soviética, criou talvez pela primeira vez a sensação efetiva de que a América Latina poderia tomar sua história nas mãos.
Em segundo lugar, a febre da contracultura nos Estados Unidos e a eclosão do movimento estudantil na Europa, que faziam dos jovens e dos estudantes os principais aliados da classe operária numa tarefa que pretendia ser nada menos do que a subversão global dos valores estabelecidos. Vire-se o mundo de ponta-cabeça -essa era a palavra de ordem que pipocava pelos cantos do planeta.
Iniciamos com Guimarães Rosa. Voltemos então a ele: "A mocidade é tarefa para mais tarde se desmentir", diz o jagunço Riobaldo no "Grande Sertão: Veredas".

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