São Paulo, quinta-feira, 1 de maio de 1997 |
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Kiarostami extrai força do caos em 'Vida'
INÁCIO ARAUJO
Era uma maneira de dizer que a vida não é uma linha reta ou um percurso em que estejam excluídas a deriva e o acaso. E que maior acaso pode haver do que um terremoto? "Vida e Nada Mais" (apresentado em festivais como "E a Vida Continua", que virou subtítulo) trata, justamente, do terremoto que destruiu parte do Irã em 1990. É à região devastada que vai um diretor de cinema, a fim de localizar os jovens atores que, anos antes, haviam participado de "Onde Fica a Casa de Meu Amigo?" Kiarostami desenvolve, em princípio, a idéia de deriva. O que no passado era organização e previsibilidade converteu-se em caos: estradas destruídas, caminhos cortados, vilarejos arruinados. O que poderia ser uma imagem de morte, no entanto, converte-se em inesperada força de vida. O que antes do terremoto seria corriqueiro (encontrar água para beber, por exemplo) transforma-se em uma pequena odisséia. Mas, depois do terremoto, aquilo que sobrevive ganha vida suplementar. Cada personagem que entra em cena parece dotado de uma luz especial. O simples ato de viver se torna poético, na medida em que não está dado previamente. Há que conquistá-lo passo a passo. Com isso, "Vida e Nada Mais" forma um conjunto tão estranho quanto poderoso: para que sua épica exista, é preciso que esteja estritamente ligada ao cotidiano, à simplicidade das coisas. Ou seja, o que há de épico no filme é o que prescinde de mito. Esse é o primeiro assombro a que Kiarostami nos introduz. É evidente, no entanto, que o filme também compõe uma metáfora do Irã. Antes de ser abalado pelo terremoto, o país foi abalado pela revolução fundamentalista dos anos 70. É improvável que a devastação tenha sido menor. A ela, Kiarostami opõe ora a virtude da regeneração pela infância (as crianças de "Onde Fica..."), ora a observação livre e desmistificadora das coisas ("Através das Oliveiras", já exibido no Brasil). Em "Vida e Nada Mais", a regeneração está ligada à sobrevivência (e nada mais). Com isso, o cinema adquire um tom de despojamento e simplicidade proporcional a seu objeto. Kiarostami compõe aqui um moderníssimo manifesto contra o virtuosismo. "Vida e Nada Mais" também poderia ser descrito como a história de um cineasta que se apaga em favor de suas imagens, que cala para que seus personagens existam. É um momento alto do cinema dos anos 90. Filme: Vida e Nada Mais (E a Vida Continua) Produção: Irã, 1992 Direção: Abbas Kiarostami Com: Farhad Kheradmand Quando: a partir de hoje, no Cinearte 1 Texto Anterior: 'Ligadas' vende lesbianismo Próximo Texto: Nora Ephron exercita melancolia em 'Michael' Índice |
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