São Paulo, quinta-feira, 1 de maio de 1997
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Kiarostami extrai força do caos em 'Vida'

INÁCIO ARAUJO
DA REDAÇÃO

Quando fez "Onde Fica a Casa de Meu Amigo?" (1987), Abbas Kiarostami mandou construir um caminho sinuoso, numa montanha, para ser percorrido pelos personagens.
Era uma maneira de dizer que a vida não é uma linha reta ou um percurso em que estejam excluídas a deriva e o acaso.
E que maior acaso pode haver do que um terremoto?
"Vida e Nada Mais" (apresentado em festivais como "E a Vida Continua", que virou subtítulo) trata, justamente, do terremoto que destruiu parte do Irã em 1990. É à região devastada que vai um diretor de cinema, a fim de localizar os jovens atores que, anos antes, haviam participado de "Onde Fica a Casa de Meu Amigo?"
Kiarostami desenvolve, em princípio, a idéia de deriva. O que no passado era organização e previsibilidade converteu-se em caos: estradas destruídas, caminhos cortados, vilarejos arruinados.
O que poderia ser uma imagem de morte, no entanto, converte-se em inesperada força de vida. O que antes do terremoto seria corriqueiro (encontrar água para beber, por exemplo) transforma-se em uma pequena odisséia.
Mas, depois do terremoto, aquilo que sobrevive ganha vida suplementar. Cada personagem que entra em cena parece dotado de uma luz especial. O simples ato de viver se torna poético, na medida em que não está dado previamente. Há que conquistá-lo passo a passo.
Com isso, "Vida e Nada Mais" forma um conjunto tão estranho quanto poderoso: para que sua épica exista, é preciso que esteja estritamente ligada ao cotidiano, à simplicidade das coisas. Ou seja, o que há de épico no filme é o que prescinde de mito. Esse é o primeiro assombro a que Kiarostami nos introduz.
É evidente, no entanto, que o filme também compõe uma metáfora do Irã. Antes de ser abalado pelo terremoto, o país foi abalado pela revolução fundamentalista dos anos 70. É improvável que a devastação tenha sido menor.
A ela, Kiarostami opõe ora a virtude da regeneração pela infância (as crianças de "Onde Fica..."), ora a observação livre e desmistificadora das coisas ("Através das Oliveiras", já exibido no Brasil).
Em "Vida e Nada Mais", a regeneração está ligada à sobrevivência (e nada mais). Com isso, o cinema adquire um tom de despojamento e simplicidade proporcional a seu objeto.
Kiarostami compõe aqui um moderníssimo manifesto contra o virtuosismo. "Vida e Nada Mais" também poderia ser descrito como a história de um cineasta que se apaga em favor de suas imagens, que cala para que seus personagens existam. É um momento alto do cinema dos anos 90.

Filme: Vida e Nada Mais (E a Vida Continua)
Produção: Irã, 1992 Direção: Abbas Kiarostami
Com: Farhad Kheradmand
Quando: a partir de hoje, no Cinearte 1

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