São Paulo, quinta-feira, 1 de maio de 1997
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Nora Ephron exercita melancolia em 'Michael'

MURILO GABRIELLI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nora Ephron sente saudades. Saudades dos Estados Unidos de tortas recém-assadas, da solidariedade do Meio-Oeste, do romantismo, da ingênua música country. O país de que ela se lembra, porém, não é o real, mas aquele construído pela tela hollywoodiana.
E é um resgate desses valores que ela tenta promover ao longo de sua carreira como roteirista e diretora. Ou melhor, um resgate do imaginário desses valores.
A referência óbvia deste "Michael - Anjo e Sedutor" é Frank Capra. Mais especificamente "A Felicidade Não se Compra" -embora enxerguem-se aqui e ali referências a outros filmes, como "Aconteceu Naquela Noite".
Na produção de 1946, um anjo tem de convencer um homem a não se suicidar para poder ganhar suas asas. Vai chegar a seu objetivo mostrando como o mundo seria ruim se o suicida em questão não houvesse nascido.
Agora o anjo -na verdade um arcanjo, Miguel- é John Travolta. Ele deve, entre um rebolado e outro, reapresentar o caminho do amor a um cínico repórter de tablóide -William Hurt. Seu tempo é curto, entretanto, e a perda de penas de sua asa faz as vezes de ampulheta.
Os dois diretores têm objetivos análogos. Ambos enxergam a moral e a ética de seu país em processo de decomposição.
As receitas prescritas, contudo, são diferentes.
Capra aposta no resgate do sentido de comunidade, de comunhão. Ephron -a exemplo de "Harry e Sally", que escreveu, e "Sintonia do Amor", que dirigiu- aposta na paixão.
Experiência e mito Mas, aparentemente, não é esse detalhe a gerar o abismo de qualidade entre os dois cineastas, e sim a matéria-prima de que se valem.
Capra se alimenta de sua própria experiência, simula o mundo que o circunda. Ephron bebe do cinema, do mítico, portanto. Num certo sentido, realiza o simulacro do simulacro.
Não é gratuita, então, a divergência entre os dois anjos. O dos anos 40 retrata principalmente o espírito americano, representa uma busca intestina pela virtude.
O dos anos 90 personifica a magia -e uma série de referências a outros papéis de John Travolta. E é com um passe de mágica que leva o personagem de William Hurt à redenção.
O fenômeno poderia ser creditado a uma deficiência na construção do repórter -seu caráter, antes e depois, é narrado, jamais mostrado; a falta de identificação impede o público de nele enxergar qualquer conflito.
Mais provavelmente, é fruto da ausência de qualquer embasamento na vida.
O encanto sob o qual Hurt é colocado traduz o encanto que Ephron vê no amor cinematográfico.
A diretora de "Michael - Anjo e Sedutor" nunca rompe a barreira do ideal. Em muitos momentos, logra ser bastante agradável, apostando que seus espectadores compartilhem de igual melancolia edulcorada.
Sofre da mesma desagregação moral que consegue identificar. Preocupa-se demais com o mito do amor para poder encontrá-lo em alguma parte.

Filme: Michael - Anjo e Sedutor
Produção: EUA, 1996
Direção: Nora Ephron
Com: John Travolta, Andie MacDowell, William Hurt
Quando: a partir de hoje nos cines Paulista 2, Calcenter 1, West Plaza 1, Aricanduva 1 e circuito

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