São Paulo, quinta-feira, 1 de maio de 1997
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Filme funciona como um réquiem para o cinema novo

JOSÉ GERALDO COUTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O Que É Isso Companheiro?", o filme, pode ser visto como um réquiem para o cinema novo, não só pelo evidente desarmamento ideológico que propõe -em contraste com aquele movimento, que era armado de ideologia até os dentes-, mas também pela maneira como o filme opera essa distensão.
Como mostrou o crítico Jean-Claude Bernardet, o personagem problemático por excelência do cinema novo era o indivíduo de classe média, geralmente um intelectual de esquerda, que oscilava entre engajar-se num projeto popular revolucionário ou acomodar-se aos interesses então estabelecidos.
No filme de Bruno Barreto, quem é o personagem contraditório e problemático? Não são os guerrilheiros, que já fizeram sua opção pela luta armada e bem ou mal a põem em prática. Não é tampouco o embaixador americano, que apenas segue seu papel ritual no mundo da diplomacia e não tem muito o que decidir.
O personagem trágico de "O Que É Isso Companheiro?" é ninguém mais, ninguém menos, que o torturador.
Como Antonio das Mortes, que matava cangaceiros e beatos para livrar o povo da "cegueira de Deus e do Diabo", o torturador vivido por Marco Ricca perde noites de sono por ter de supliciar "essas crianças manipuladas por uma escória sem escrúpulos". Tortura-as para salvá-las, em suma.
Vilão
Outro "detalhe" significativo: como todo bom filme de suspense, esse também tem um vilão. Quem é ele, senão o guerrilheiro-chefe da operação de sequestro, o inflexível e sectário Jonas (Matheus Nachtergaele)? Não há no filme, do lado do regime militar, nenhum personagem comparavelmente assustador e repulsivo.
No afã de escapar da parcialidade em favor da esquerda, o diretor Bruno Barreto talvez tenha sido um tanto condescendente com a direita.
É perfeitamente compreensível que sobreviventes dos anos de chumbo da repressão militar sintam-se incomodados ou indignados diante desse filme.
Pá de cal
Mas o que importa aqui é que, para o bem ou para o mal, Bruno Barreto lançou a pá de cal que faltava para enterrar de vez o cinema novo, no seio do qual, ironicamente, nasceu (seu pai, Luís Carlos Barreto, foi o mais importante produtor do movimento).
Não por acaso, "O Que É Isso Companheiro?" é, do ponto de vista cinematográfico, o mais americano dos filmes brasileiros.
Ao contrário de Hector Babenco, que, depois de estigmatizado pelos cinema-novistas como "cineasta do mercado", foi a Hollywood para fazer cinema com um olhar estrangeiro, Bruno Barreto foi lá para aprender e voltou para fazer igual aqui.
Harry Stone
O símbolo mais acabado desse seu périplo talvez seja a participação no filme, como figurante, do ex-representante no Brasil da Motion Pictures Association of America, Harry Stone.
Demonizado durante décadas pelos cinema-novistas como emissário do imperialismo cinematográfico hollywoodiano, Stone acaba agora assimilado pelo cinema brasileiro. Ou terá sido o contrário?

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