São Paulo, sexta-feira, 2 de maio de 1997
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POCAHONTAS

Disseram-lhe que a filha do rei, que lhe salvava a vida, era Pocahontas. Mas esse não era seu verdadeiro nome
Os índios, temendo que se apossassem dela por meio de algum malefício, tinham dado aos estrangeiros o nome dalso de Pocahontas
Pocahontas era a filha do rei Powhatan, que se sentava num trono feito à maneira de um leito, coberto por uma vestimenta costurada com peles de camundongo, cujas caudas ficavam pendentes. Ela foi educada numa cabana forrada de palha, entre os sacerdotes e as mulheres que tinham a cabeça e as espáduas pintadas de vermelho vivo e que a divertiam com argolas de cobre e guizos de serpente. Namontak, um servidor fiel, vigiava a princesa e organizava suas brincadeiras. Algumas vezes levavam-na até a floresta perto do grande rio Rappahanok, e 30 virgens nuas dançavam para distraí-la. Pintavam-se com várias cores e cobriam-se de folhas verdes, levavam na cabeça chifres de bode, e uma pele de lontra na cintura, e, agitando clavas, pulavam em volta de uma fogueira que crepitava. A dança terminada, apagavam as chamas e reconduziam a princesa à luz de tições.
No ano de 1607, a região de Pocahontas foi perturbada por europeus. Fidalgos arruinados, escroques e caçadores de ouro vieram se estabelecer no rio Potomac, e construíram cabanas de madeiras. Deram às cabanas o nome de Jamestown, e chamaram Virgínia a sua colônia. A Virgínia não passava, nesses anos, de um miserável e pequeno forte construído na baía de Chesapeake, no meio dos domínios do grande rei Powhatan. Os colonos elegeram para presidente da colônia John Smith, que outrora vivera uma aventura entre os turcos. Caminhavam sobre as rochas e viviam do mar e do pouco que podiam obter pelo tráfico com os indígenas.
No começo foram recebidos com uma grande cerimônia. Um sacerdote selvagem veio tocar diante deles uma flauta de caniço, usando em volta de seus cabelos atados uma coroa de pele de gamo pintada de vermelho, e aberta como uma rosa. Seu corpo estava pintado de carmesim, seu rosto de azul; e ele tinha a pele salpicada com pontos de prata nativa. Então, com o rosto impassível, ele sentou-se numa esteira, e fumou um cachimbo de tabaco.
Depois outros se alinharam em colunas que formavam quadrados, pintados de negro, vermelho e branco, e alguns pintados pela metade, cantando e dançando diante de seu ídolo Oki, feito de peles de serpentes recheadas de musgo e ornado com correntes de cobre.
Mas alguns dias depois, o capitão Smith, ao explorar o rio numa canoa, foi de repente atacado e amarrado. Levaram-no entre gritos terríveis até uma casa comprida onde ele ficou vigiado por 40 selvagens. Os sacerdotes, com seus olhos pintados de vermelho e as figuras negras atravessadas por grandes listras brancas, cercaram duas vezes a fogueira da casa de guarda com um rasto de farinha e de grãos de trigo. Em seguida John Smith foi conduzido à cabana do rei. Powhatan estava vestido com suas peles e aqueles que o rodeavam tinham os cabelos ornados com penugens de pássaro. Uma mulher trouxe água para o capitão lavar suas mãos, e uma outra as enxugou com um tufo de plumas. Enquanto isso dois gigantes vermelhos depuseram duas pedras lisas aos pés de Powhatan. E o rei levantou a mão, indicando que John Smith ia ser deitado sobre essas pedras e que esmagaria sua cabeça a golpe de clava.
Pocahontas só tinha 12 anos e avançava timidamente sua figura entre os conselheiros. Ela gemeu, correu para o capitão e pôs a cabeça contra seu rosto. John Smith tinha 29 anos, grandes bigodes, a barba em leque, e seu rosto era aquilino. Disseram-lhe que o nome da filha do rei, que lhe salvava a vida, era Pocahontas. Mas este não era seu verdadeiro nome. O rei Powhatan fez a paz com John Smith e o colocou em liberdade.
Um ano mais tarde, o capitão Smith acampou com sua tropa na floresta fluvial. Era noite espessa; uma chuva penetrante abafava qualquer barulho. Súbito, Pocahontas tocou o ombro do capitão. Ela tinha atravessado, sozinha, as medonhas trevas do bosque. Ela lhe segredou que seu pai queria atacar os ingleses e matá-los quando eles estivessem ceando. Suplicou que fugissem, se queriam viver. O capitão Smith lhe ofereceu vidrilhos e fitas; mas ela chorou e respondeu que não ousava tanto. E fugiu, sozinha, para a floresta.
No ano seguinte, o capitão Smith caiu em desgraça junto aos colonos, e, em 1609 foi embarcado para a Inglaterra. Ali, ele compôs livros sobre a Virgínia, onde explicava a situação dos colonos e contava suas aventuras. Por volta de 1612, um certo capitão Argall, negociando com os Potomacs (que eram o povo do rei Powhatan), sequestrou a princesa Pocahontas e a prendeu no navio como refém. O rei, seu pai, ficou indignado; mas ela não lhe foi devolvida. Assim, prisioneira, começou a debilitar-se até o dia em que um fidalgo de boas maneiras, John Rolfe, se enamorou dela e a desposou. Casaram-se em abril de 1613. Diz-se que Pocahontas confessou seu amor a um de seus irmãos, que veio vê-la. Ela chegou à Inglaterra no mês de junho de 1616, onde reinava, entre as pessoas da sociedade, grande curiosidade para visitá-la. A boa rainha Anne acolheu-a com ternura e ordenou que gravassem seu retrato.
O capitão John Smith, que a voltar para a Virgínia, veio prestar-lhe homenagem antes de embarcar. Ele não a via desde 1608. Ela tinha 22 anos. Quando ele entrou, ela virou a cabeça e escondeu seu rosto, não respondendo nem a seu marido nem a seus amigos, e ficou sozinha durante duas ou três horas. Depois chamou o capitão. Então ergueu os olhos e lhe disse:
"Vós prometestes a Powhatan que o que fosse vosso seria dele também, e ele fez o mesmo; sendo estrangeiro em sua pária, vós iríeis chamá-lo "pai"; sendo estrangeira na vossa, eu vos chamarei assim."
O capitão Smith desculpou-se alegando que ela era filha de rei.
Ela respondeu:
"Vós temestes ir até o país de meu pai, e o assustastes, a ele e todos os outros, exceto a mim: temeis agora que eu vos chame de "meu pai?" Eu vos chamarei "meu pai", e vós me chamareis "minha filha", e serei para sempre da mesma pátria que vós... Lá disseram-me que tínheis morrido..."
E ela confiou em segredo a John Smith que seu nome era Matoaka. Os índios, temendo que se apossassem dela por meio de algum malefício, tinha dado aos estrangeiros o nome falso de Pocahontas.
John Smith partiu para a Virgínia e jamais serviu Matoaka. Ela adoeceu em Gravesend, no começo do ano seguinte, perdeu as cores e morreu. Não tinha ainda 23 anos.
Seu retrato traz esta inscrição: "Matoaka aliás Rebecca filia potentissimi principis Powhatani imperatoris Virginiae". A pobre Matoaka tinha um chapéu de feltro alto, com duas guirlandas de pérolas; uma grande gola de renda engomada, e um leque de plumas. Tinha o rosto fino, as maçãs do rosto salientes e grandes olhos doces.

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