São Paulo, sexta-feira, 2 de maio de 1997
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CAPITÃO KID

Kid declarou que seus esconderijos permaneceriam eternamente desconhecidos por causa do "homem com o balde ensanguentado"
Moor estava bêbado. O capitão se voltou e, apanhando um, balde, acertou-lhe a cabeça; Moor caiu, o crânio rachado

Ninguém se lembra por que razão deu-se a este pirata o nome do cabrito (Kid). O ato pelo qual Guilherme 3º, rei da Inglaterra, investiu-o com uma patente sobre a galera "Aventura", em 1695, começa com as palavras: "A nosso leal e bem-amado capitão William Kid, comandante, etc. Saudações." Mas é certo que, desde então, era um nome de guerra. Alguns dizem que ele tinha por hábito, sendo elegante e refinado, usar sempre, no combate e nas manobras, delicadas luvas de cabra pelo avesso com renda de Flandres; outros asseguram que, em suas piores matanças, ele exclamava: "Eu que sou doce e bom com um cabrito recém-nascido"; outros ainda pretendem que ele guardava o ouro e as jóias em sacos muito leves, feitos de pele de cabra, e que o uso lhe ocorreu no dia em que pilhou uma nau carregada de mercúrio com o qual encheu mil bolsas de couro, que ainda estão enterradas no flanco de uma pequena colina nas ilhas Barbados. Basta saber que seu pavilhão de seda negra estava bordado com uma caveira e uma cabeça de cabrito, e que seu sinete estava gravado da mesma maneira. Aqueles que procuram os numerosos tesouros que ele escondeu nas costas dos continentes da Ásia e da América, levam um cabrito negro, o qual deve berrar no lugar em que o capitão escondeu seu saque; mas nenhum deles teve êxito. O próprio Barba-Negra, que fora informado por um antigo marinheiro de Kid, Gabriel Loff, só encontrou nas dunas, nas quais está hoje Fort Providence, gotas esparsas de mercúrio aflorando através das areias. Todas essas escavações são inúteis, pois o capitão Kit declarou que seus esconderijos permaneceriam eternamente desconhecidos por causa do "homem com o balde ensanguentado". Kid, com efeito, viveu assombrado por esse homem durante toda sua vida, e os tesouros de Kid são assombrados e defendidos por ele, desde sua morte.
Lord Bellamont, governador dos Barbados, irritado com o enorme saque dos piratas nas Índias Ocidentais, equipou a galera Aventura e obteve do rei, para o capitão Kid, o posto de comandante. Há muito Kid invejava o famoso irlandês, que pilhava todo e qualquer convés; prometeu a Lord Bellamont tomar sua chalupa e trazê-lo com seu companheiros para fazê-los executar. A aventura tinha 30 canhões e 150 homens. Primeiro Kid aportou na Madeira e se abasteceu de vinho; depois em Bonavista, para carregar sal; por fim, em Santiago, onde se abasteceu completamente. Daí velejou até a entrada do Mar Vermelho, onde, no Golfo Pérsico, há um recanto com uma pequena ilha que se chama a Chave de Bab.
Foi aí que o capitão Kid reuniu seu companheiros e içou o pavilhão negro com a caveira. Todos juraram, sob o machado, obediência absoluta aos regulamentos dos piratas. Todo homem tinha direito a voto, e direito igual às provisões frescas e aos licores fortes. Os jogos de cartas e de dados foram interditos. As luzes e velas deviam ser apagadas às oito horas da noite. Se um homem quisesse beber mais tarde, teria que beber na ponte, à noite, a céu descoberto. A companhia não receberia nem mulher nem menino. Aquele que os introduzisse disfarçados seria punido com a morte. Os canhões, pistolas e facões deviam ser conservados e lustrados. As disputas se resolveriam em terra, com sabre e pistola. O capitão e o quartel-mestre teriam direito a duas partes; o mestre, o contramestre, o canhoneiro, a uma e meia; os outros oficiais, a uma e um quarto. Descanso para os marinheiros no sábado.
O primeiro navio que encontraram era holandês, comandado pelo Schipper Mitchel. Kid içou o pavilhão francês e começou a perseguição. O navio logo mostrou as cores francesas; então o capitão gritou de longe em francês. O Schipper tinha um francês a bordo, que respondeu. Kid perguntou se ele tinha um passaporte. O francês disse que sim. "Pois bem, por Deus, respondeu Kid, em virtude de vosso passaporte, eu vos tomo por capitão deste navio." E imediatamente, o enforcou na verga. Depois mandou buscar os holandeses um a um. Interrogou-os, e, fingindo não entender o flamengo, ordenou para cada prisioneiro: "Francês - a prancha!" Colocaram uma prancha na proa. Todos os holandeses tiveram que correr por cima dela, nus, diante da ponta do facão do contramestre, e saltar no mar.
Nesse instante, o canhoneiro do capitão Kid, Moor, levantou a voz: "Capitão", ele gritou, "por que matais estes homens?" Moor estava bêbado. O capitão se voltou e, apanhando um balde, acertou-lhe a cabeça. Moor caiu, o crânio rachado. O capitão Kid mandou lavar o balde, no qual os cabelos tinham se colado, com sangue coagulado. Nenhum homem da tripulação quis mais mergulhar o lambaz nele. Deixaram o balde amarrado nas redes do filerete.
Desse dia em diante, o capitão passou a ser assombrado pelo homem do balde. Quando tomou a nau moura Queda, armada por hindus e armênios, com 10 mil libras de ouro, na partilha do saque o homem do balde ensanguentado estava sentado sobre os ducados. Kid viu-o claramente e praguejou. Desceu para sua cabine e esvaziou um copo de vinho. Depois, de volta à ponte, mandou lançar o antigo balde no mar. Na abordagem da rica nau de comércio Mocco, não se achava nada para medir a parte de ouro em pós do capitão. "Enche um balde", disse uma voz atrás do ombro de Kid. Ele cortou o ar com seu facão e enxugou os lábios, que espumavam. Depois mandou enforcar os armênios. Os homens da tripulação pareciam nada ter ouvido. Quando Kid atacou o Andorinha, estendeu-se sobre seu leito após a partilha. Quando acordou, sentiu-se molhado de suor, e chamou um marinheiro para que lhe trouxesse algo com que pudesse se lavar. O homem trouxe água numa bacia de estanho. Kid olhou-o fixamente e urrou: "É assim que se conduz um cavalheiro da fortuna? Miserável! tu me trazes um balde cheio de sangue!" O marinheiro fugiu. Kid desembarcou-o e abandonou-o em terra, com um fuzil, uma garrafa de pólvora e uma garrafa de água. Não havia outro motivo para enterrar seus saques nos mais variados lugares solitários, entre as areias, a não ser por estar persuadido de que todas as noites o canhoneiro assassinado vinha esvaziar o paiol de ouro com seu balde para jogar as riquezas no mar.
Kid acabou sendo aprisionado nas costas de New York. Lord Bellamont enviou-o para Londres. Foi condenado ao patíbulo. Enforcaram-no no cais da Execução, com sua roupa vermelha e suas luvas. No momento em que o carrasco lhe enfiou o capuz negro, o capitão Kid se debateu e gritou: "Por Deus! eu bem sabia que ele colocaria seu balde na minha cabeça!" O cadáver enegrecido ficou enganchado nos grilhões durante mais de 20 anos.

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