São Paulo, sábado, 3 de maio de 1997
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Cannes esbanja saúde para apagar velinhas

GILLES JACOB

Vocês certamente devem estar se perguntando como o Festival de Cannes pretende estar no momento de soprar suas 50 velinhas. Apagá-las não é brincadeira.
Uma vez decidido que vamos dar a festa, é preciso ver com que recursos ela se realizará.
Esbanjando saúde, com os pés e olhos em perfeito estado: é o diagnóstico que a mostra espera ter às vésperas de seu grande aniversário.
Bons pés, para um salto no tempo: "Use sapatos confortáveis", já recomendava Richard Brooks.
Bons olhos, para ter o máximo de clarividência. Era Buñuel quem dizia: "Como a maioria dos surdos, não gosto muito dos cegos!".
Nossa linha de conduta privilegia dois tipos de projetos: os de grande fôlego e os projetos "da atualidade".
Os primeiros conservarão para as gerações futuras o traço dos 50 anos iniciais do festival: fatos cotidianos, lembranças, evocações de seus grandes momentos.
Para os projetos "da atualidade", trata-se de se voltar decididamente para o futuro.
Nesse espírito de reavaliação, a decisão de eleger uma Palma de Ouro entre todas as palmas de ouro é bastante significativa.
Essa Palma não será a recompensa atribuída por alguns dos premiados para apenas um deles, mas a eleição de um grande cineasta vivo e em exercício, entre todo os não premiados.
Essa "escolha dos eleitos", como dizia Giraudoux, terá o mérito de reparar uma das inevitáveis injustiças cometidas ao longo desses anos.
Em segundo lugar, a retrospectiva. Ela recapitulará as maiores descobertas que o festival fez.
Esse olhar contemporâneo sobre as descobertas de ontem que se tornaram as glórias de hoje poderá mostrar as intuições do festival.
Dessa forma, a retrospectiva 97, o encontro dos cineastas e a Palma das Palmas de Ouro reafirmarão com força o espírito de descoberta do festival.
E o que é mais importante para se debater do que o papel de um festival como promotor e guardião de talentos?
A cultura precisa de tempo para desabrochar. Molière séculos depois imitaria Terêncio ou Plauto; Chaplin passou a copiar René Clair logo no ano seguinte. Hoje, realizaríamos o remake de um filme antes mesmo de tê-lo produzido.
É uma fatalidade: a exploração ultra-rápida dos filmes mata a memória! Mas a história também precisa de tempo para julgar. Todas as épocas se enganaram a seu próprio respeito -sem exceção.
Somos todos, cada um à sua maneira, inspetores Clouzeau da posteridade.
Nós, diretores de festivais, ao descobrir filmes, deixamos nossas marcas digitais. Nas pistas que seguimos, podemos identificar nossos erros.
Ah, estamos em boa companhia: Taine, Gide, Godard, Truffaut etc., todos, um dia ou outro, também se enganaram. Porque há duas maneiras de se enganar: acreditar ter descoberto um autor quando, em seguida, ele já não fará mais nada ou esquecer de descobrir alguém que vai marcar seu tempo.
Mas tudo isso, inevitável, não é tão grave. Como dizia John Huston, só a busca já vale.
Apesar de tudo, ao longo desses anos, o festival revelou cineastas como Kieslowski e Tarantino. A lista é longa, mas está longe de ser exaustiva.
É então com esse espírito não-comemorativo, não autocelebrativo, mas voltado para o futuro, que preparamos nosso programa 97.
Estava eu mergulhado nessas reflexões quando, de repente, na direção de Rimini, vi um navio emergindo da bruma. Chamava-se "Rex".
Será que ele se dirigia para um fiorde escandinavo, em busca de um menino chamado Ingmar, ou para a ilha de Panarea, onde uma jovem Mônica acabaria descobrindo, caro Michelângelo, os segredos do cinema moderno?
Ou estaria indo para uma terra incógnita, onde um tal de Robson chamado Dom Luis esperava a sexta-feira para repensar o mundo?
De repente, vindo de milhões de anos-luz até o planeta festival, a voz do cineasta que eu mais admirava murmurou no meu ouvido: "Gentile Gilles, não se esqueça de que o segredo do novelista é deixar sempre um suspense para a semana seguinte".
Que droga! Mas é a pura verdade. Então decidi respeitar o conselho de Federico e lhes dizer: "A seguir cenas ...".

Trecho de entrevista coletiva de Gilles Jacob, delegado-geral do Festival de Cannes, em 15 de maio de 1996

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