São Paulo, sábado, 3 de maio de 1997
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Aniversário é o mais importante após o centenário do cinema

LEON CAKOFF
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Desde a sua origem, o Festival de Cannes é uma referência de política cultural. Diante das circunstâncias políticas da ocasião, a indústria do cinema americano achou de bom-tom ajudar o nascente festival e embarcou num transatlântico de Nova York uma trupe de segundo time, como Mae West, Norma Shearer, Constance Bennett, George Raft.
No seu frustrado ano de nascimento, em 1939, com nada menos do que Louis Lumière como presidente de honra, o festival foi interrompido com a invasão da Polônia pelas tropas nazistas.
O único filme memorável daquela primeira seleção continua sendo o americano "O Mágico de Oz", de Victor Fleming.
George Huisman volta a pensar no segundo festival de Cannes, programado para 1946.
Primeiras reações no provinciano diário "Nice Matin": "Não se sabia que havia tanta gente interessada em cinema". É a constatação do poder escapista das imagens nos cenários reais do pós-guerra. Em contrapartida, vem a consagração do neo-realismo italiano e de Roberto Rossellini com "Roma, Cidade Aberta".
Em 1953 sai o primeiro reconhecimento em Cannes a um filme brasileiro: "O Cangaceiro", de Lima Barreto, considerado o melhor filme de aventura. O severo exotismo de Barreto só viria a ser superado pelo exotismo carnavalesco de "Orfeu do Carnaval", de Marcel Camus, em 59. Um filme proibido para crianças e que, no Brasil, o racismo eliminou o 'negro' do título original "Orfeu Negro".
Até hoje, Anselmo Duarte ostenta a única "Palma de Ouro" para um filme brasileiro por "O Pagador de Promessas", atribuído em 1962. Esta única vez criou sua própria mitologia. O jovem François Truffaut estava no júri.
Duarte se recusa a seguir carreira internacional, volta ao Brasil para desfilar em carro de bombeiro como um deus do olimpo e passa a enfrentar sozinho a panela do Cinema Novo que o execra.
No ano do nosso golpe militar o Brasil apresenta em Cannes dois marcos do Cinema Novo: "Deus e Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha, e "Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos. Infelizmente para Duarte, ambos saem sem prêmios do festival, mas são marcos referenciais do cinema mundial. Fritz Lang presidia o júri que premiou a quase opereta "Os Guarda-Chuvas do Amor", de Jacques Demy.
Entre Hollywood, o mundanismo reticente e o pan-europeísmo, Cannes já estava consagrado como palco principal de revelações para legiões crescentes de jornalistas. Este ano atinge-se o recorde de 4.000 credenciamentos para a imprensa com um total previsto de 50 mil visitantes.
A presença do presidente Jacques Chirac para a inauguração do 50º Festival de Cannes já é um grande problema para os organizadores. O aparato de segurança presidencial forçou o cancelamento da maioria das reservas vips no hotel Majestic, em frente ao novo "Palais" do festival.
Mais um filme paulista rompe em 1965 os ditames do Cinema Novo. É "Noite Vazia", de Walter Hugo Khouri, fiel ao existencialismo lançado por Antonioni.
Nada mais natural. O festival ditava tendências e já tinha acolhido e consagrado nomes como Orson Welles, Rita Hayworth, Vittorio de Sica, Walt Disney, Sophia Loren, Michèle Morgan, Grace Kelly, Alain Resnais, Ingrid Bergman, Federico Fellini, Yul Brynner, Jean Cocteau, Martine Carol, François Truffaut...
Passa "A Hora e a Vez de Augusto Matraga", de Roberto Santos, na competição de 66; "Terra em Transe", de Glauber Rocha, passa no ano seguinte. E o mesmo Glauber, em 69, recebe o prêmio de melhor diretor por "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro". Metáfora melhor impossível em plena ditadura.
A metáfora ganhou uma dimensão hermética indecifrável com "Pindorama", de Arnaldo Jabor, na competição de 71, o meu primeiro festival de Cannes. Não tinha importância. Um fuminho talvez ajudasse. Era "notre façon" de resistência.
Conheci o dinossauro das resistências, o perseguido roteirista Dalton Trumbo, o mais 'negro' das listas macarthistas, distribuindo pessoalmente folhetos-convites para o seu comovente primeiro e único filme "Johnny Vai à Guerra".
Boicotado pelas grandes produtoras americanas, seu filme pacifista chegou anos depois ao Brasil, quando a censura foi degelando. O compromisso era ver no máximo três filmes por dia. No resto do tempo, dava para se conversar com mitos como Chaplin, Groucho Marx. Foi-se o tempo. O prazer virou um vício que não dá para largar.
Cannes tem uma luz cegante e uma cor azul de mar única nos meses de maio dos festivais. A média atual é de seis a oito filmes diários. O triste é apreciar muitas vezes obras-primas sem tempo para a sua digestão, que já é tempo de correr atropelando tietagens e paparazzis pelas ruas, entre uma sala e outra.

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