São Paulo, sábado, 3 de maio de 1997
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Livros são a grande herança

GILBERTO DIMENSTEIN
DE NOVA YORK

Durante jantar com professores de pedagogia, março passado em Nova York, Paulo Freire saboreava um espaguete ao molho de tomate, comentava o curso que daria em Harvard e deixou escapar uma frase: "Se parar de trabalhar, não tenho como sobreviver".
A confidência daquela noite do dia 26, uma quarta-feira, não veio por causa de Harvard, mas porque se sentia cansado, com dores no braço -mudar-se para os Estados Unidos parecia, naquele momento, uma tarefa árdua, com todos os detalhes domésticos do tipo arrumar casas ou empacotar livros.
Estava tão cansado que preferiu não ir ao restaurante a poucos metros e, assim, evitar os últimos ventos frios do inverno; foi-lhe improvisado o espaguete com molho enlatado, suavizado pelo vinho tinto italiano. "Tenho medo que seja o coração", disse, reclamando com a mulher Ana Maria.
Estava cheio de planos, mas sempre deixava escapar a sensação de que a idéia da morte estava mais próxima do que gostaria, até porque muitos de seus amigos estavam indo embora.
À mesa, ele voltou para trás no tempo. Contou ter sido reconhecido, certa vez, por um camelô turco em Nova York e parado no meio da rua por um desconhecido em Londres, que lhe disse num inglês com sotaque indiano: "Eu sabia que algum dia iria poder abraçá-lo". Paulo Freire disse tirar desse tipo de episódio, corriqueiro em sua vida pelo exterior, uma lição: "Tenho direito a ficar orgulhoso, mas não arrogante".
Seu método de alfabetização ganhou o mundo porque alterava a relação de arrogância do professor-aluno; o aluno teria sempre algo a ensinar ao professor, daí surgindo uma relação de aprendizado, a partir da vivência e não das abstrações distantes da realidade. Nesse contato, surgia a própria essência da educação como fonte de libertação.
Aquela frase sobre como seria difícil sobreviver sem trabalhar deixou perplexo alguns dos comensais: "Como um país deixa um pensador deste porte sem o devido reconhecimento?", comentou Naomi Barber, professora de Columbia, criadora de escolas públicas alternativas em Nova York. "É uma questão de preservação de um patrimônio", afirma Frank Pignatelli, diretor da Bank Street School, tida como o mais avançado centro de treinamento de professores nos Estados Unidos.
Um dos papas do uso de Internet em educação, Robbie McClintock, chefe do Departamento de Novas Tecnologias da Faculdade de Educação de Columbia, preparou estudo sobre experiência da computação nas escolas americanas. Naquele estudo, intitulado "Educado para o século 21", aparece o nome de Freire como um dos guias da educação contemporânea.
Sinal desse reconhecimento no exterior é preparado pela Universidade de Nova York, num ambicioso projeto cinematográfico. Considerado o mais importante documentarista social do país, George Stoney, 79, ganhador de um Oscar, resolveu colocar a vida de Paulo Freire nas telas.
"Ele ajudou a moldar a educação no planeta", justifica Stoney, que já tinha realizado filmagens no Brasil. Já há dez horas de entrevistas filmadas com Freire."O projeto não apenas continua, mas está importante."
As equipes vão gravar cenas em tribos de índios na Amazônia ou projeto Axé, de meninos de rua em Salvador, passando por beduínos, vilarejos na África, Ásia, até escolas de ponta de Nova York. "Nossa idéia é documentar visualmente seu rastro educacional, ensinando aos professores o uso da educação como fonte de libertação", afirma George Stoney, assessorado no Brasil pelo documentarista Julio Vainer.
A morte de amigos próximos, as doenças que o impediam de viajar, homenagens em livro e, agora, filme faziam com que ele fosse forçado a fazer balanço de sua vida. Naquele jantar, do dia 26 de março, definiu, numa frase de que, por algum mecanismo, previa um desfecho: "O bom educador deve gostar de viver. Ele tem de ensinar o prazer e o encantamento da vida, mesmo que muitas vezes pareça difícil. Esse amor pela descoberta da vida como fonte de liberdade é a grande herança que vou deixar com meus livros".

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