São Paulo, sábado, 3 de maio de 1997
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Soberania ameaçada

REGINALDO OSCAR DE CASTRO

O efeito vinculante -eficácia "erga omnes" de decisões do STF (ou, como querem alguns, dos tribunais superiores), que resulta numa espécie de indexador compulsório de sentenças- surge com uma boa intenção: aliviar a pauta dos tribunais, fazendo com que se abstenham de julgar questões a respeito das quais já haja decisão do STF.
O efeito prático, porém, é grave: estabelece a perda de autonomia dos juízes, tornando-os meros aplicadores das súmulas dos tribunais superiores. Criado o instituto, as decisões do STF teriam efeito incontrastável, já que nenhum outro tribunal poderia contestá-lo.
Há, neste momento, dois projetos estabelecendo o princípio, um na Câmara e outro no Senado. O da Câmara é arbitrário; o do Senado é inócuo. Vejamos por quê. O primeiro é arbitrário pela compulsoriedade que cria, pondo em risco o próprio cargo do juiz que o desobedecer, o que é ofensivo à autonomia da magistratura. O outro é inócuo exatamente pelo contrário: por não estabelecer a compulsoriedade, o que o torna desnecessário, já que as súmulas existentes do STF, que todos cumprem, têm rigorosamente o mesmo efeito.
Imagine-se como funcionaria o efeito vinculante num contexto de exceção política: com base nele, o presidente da República e mais 11 juízes por ele nomeados teriam o controle absoluto e arbitrário da sociedade brasileira. Não se trata aí de duvidar da integridade moral do Supremo ou de seus integrantes. Não é ela que está em exame.
O autoritarismo, quando se estabelece, fere de morte a autonomia dos poderes. E a reação é inexoravelmente lenta e penosa, diante da complexidade do processo político. É difícil a compreensão do arbítrio e mais ainda o estabelecimento de meios eficazes para enfrentá-lo. Os regimes autoritários, em regra, elegem como alvo inicial o princípio da independência dos poderes. Admitem muitas vezes a existência formal desses poderes -é o caso do regime militar brasileiro pós-64-, mas jamais sua autonomia e soberania.
Para agredir esse princípio, servem-se não apenas da truculência física, mas sobretudo de estratégias de desmoralização das instituições. Basta ver o que aconteceu no Peru sob o comando de Fujimori não há muito tempo. A palavra-chave para violentar o Estado democrático de Direito e fechar os poderes Judiciário e Legislativo daquele país foi o combate à corrupção.
Aqui, já vimos esse filme algumas vezes, ao longo da história republicana, sem que disso resultasse o fim da corrupção ou mesmo uma maior funcionalidade do processo governativo. Muito pelo contrário.
Nesses momentos de exceção ou de crise política aguda, o Supremo Tribunal Federal tem sido um dos alvos prediletos, o que lhe impõe desgastes consideráveis e quase sempre inevitáveis. Na ditadura de Floriano Peixoto, no início da República, o Supremo foi pressionado a negar habeas corpus a presos políticos, com a ameaça feita de viva voz pelo ditador: "E quem concederá habeas corpus aos juízes?"
Na crise política que resultou na cassação do deputado Márcio Moreira Alves e na edição do AI-5, em 1968, o Supremo teve três juízes cassados. Ato contínuo, o regime militar nomeou nada menos que cinco juízes para substituí-los, agredindo gravemente a autonomia e independência dos poderes.
O que está claro é que, nos momentos de crise institucional, o Supremo sempre sofre desgastes consideráveis. Nem sempre (quase nunca) tem meios para reagir no curto prazo. O efeito vinculante, nesses termos, no mínimo, facilita esse controle arbitrário da sociedade.
Se o efeito surge para desobstruir os tribunais, é preciso saber quem é o grande ator desse congestionamento. Sabe-se que é o Estado, que tem por norma recorrer em todas as causas em que é réu, ainda que lhe seja claramente adversa toda a jurisprudência existente.
Para resolver essa situação, não é preciso mexer na Constituição. Basta a legislação ordinária. A crise da Justiça brasileira, componente fundamental da crise social do país, tem como raiz o descaso das classes dirigentes.
A Justiça brasileira precisa ser reequipada, reestruturada, para que chegue a toda a população. E isso depende de decisão política. Essa a questão. O efeito vinculante não atinge esse objetivo, sequer o tangencia. O presidente do STJ, ministro Bueno de Souza, acha que não passa de "mero remendo". Sem os ajustes estruturais já mencionados, a reforma do Judiciário simplesmente não será digna desse nome.

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