São Paulo, domingo, 4 de maio de 1997
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A lógica atroz da política imigratória

JACQUES RANCIÈRE
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Estado francês acaba de apresentar um novo episódio deste longo folhetim que se chama "questão dos imigrantes", com a adoção de uma lei destinada a reforçar a luta contra a imigração clandestina. Preparada pelo ministro do Interior, votada pela direita "liberal" numa sessão a que a esquerda "socialista" se esqueceu de comparecer, esta lei só se tornou um tema público pelo vasto movimento de protesto, partido de um abaixo-assinado lançado por um grupo de cineastas, contra o artigo da lei que obriga os proprietários de um imóvel a declarar à prefeitura a chegada e partida dos estrangeiros a que eles dão abrigo.
Este movimento poderia parecer um simples protesto moral, opondo a razão de Estado às velhas leis de hospitalidade. Ora, ele permitiu, de maneira muito mais profunda, pôr em evidência a estranha lógica deste gênero de legislação e do sistema estatal de que ele é a manifestação.
O problema, de fato, é que, três anos atrás, o anterior ministro do Interior já tinha feito votar uma grande lei destinada a sustar a imigração clandestina. Aparentemente, o efeito não havia sido logrado. E a verdade é que uma lei, cujo objetivo específico é incriminar aqueles que infringem a lei, conta sempre com uma eficácia limitada. Limitada, mas não nula: já que não impedia a entrada de novos clandestinos, a lei transformou em trabalhadores clandestinos certo número de estrangeiros que se encontrava legalmente na França havia 10 ou 15 anos.
Em 1996, uma longa greve de fome e os movimentos de solidariedade puseram em evidência esta consequência paradoxal e exigiram que se regularizasse a situação destes estrangeiros sem documentos. O governo tomou as coisas pelo avesso: já que a clandestinidade aumentara, cabia uma nova lei contra os imigrantes clandestinos, a qual fará, sem dúvida, novos clandestinos, logo necessitando de uma nova lei etc.
Quando uma ação erra tão visivelmente o seu alvo, pensa-se, geralmente, que falta lógica a seu autor ou que, então, o alvo realmente buscado é diferente do alvo proclamado. Se as medidas e as legislações antiimigrantes são pouco eficazes, isso ocorre, sem dúvida, por elas visarem menos a diminuir efetivamente o número dos imigrantes do que a mostrar que o governo se empenha, sem descanso, em diminuí-lo.
Tal demonstração tem um alvo específico. Ela tem em vista uma extrema-direita que fez da imigração o seu grande cavalo de batalha para seduzir especialmente os eleitores dos bairros populares, marcados pelos difíceis problemas de coabitação com as populações negra e do Magreb. A verdadeira lógica desta repetitiva atividade legislativa poderia ser enunciada assim: há um problema de imigração; esse problema tem como resultado o racismo e o desenvolvimento da extrema-direita; esta última propaga ideais racistas, o que é muito lamentável, e nos arrebata os eleitores, o que o é mais ainda; há, portanto, que se combater a extrema-direita. Ora, o melhor meio de combatê-la é tomar-lhe o cavalo de batalha ao mover contra a imigração uma luta incessante.
Infelizmente, este efeito parece tão incerto quanto o precedente. Há exatos 12 anos, um primeiro-ministro "socialista" proclamou que a extrema-direita racista levantava um problema de relevo, o da imigração, ao qual ela dava uma resposta equivocada -o seu único erro- por incitar o ódio aos imigrantes. Desde então, a lógica que consiste em tomar medidas racistas oficiais e razoáveis para desarmar as selvagens paixões racistas teve tempo de se pôr a descoberto: ela não diminuiu nem sequer uma unidade do número de vozes da extrema-direita racista. Essa última não pára de progredir, não somente em termos de sucessos eleitorais, mas também pela própria credibilidade de seu discurso.
O círculo parece, assim, perfeito. Não apenas porque os efeitos obtidos parecem contradizer constantemente os fins visados, mas, sobretudo, porque ninguém mais sabe qual é o meio e qual é o fim, qual é a causa e qual é o efeito. É preciso fazer leis para reduzir a imigração porque há muitos imigrantes? Ou é preciso, então, fazer leis contra a imigração para reduzir o racismo que se queixa do excesso de imigrantes? E o que fazer para reduzir o racismo? Suprimir a imigração para fazer desaparecer o racismo, por falta de objeto? Ou travar, então, uma luta constante contra a imigração para provar aos racistas que somos tão racistas quanto eles e que eles, portanto, não precisam mais insistir no racismo?
O círculo dos meios e dos fins, das causas e dos efeitos, revela, assim, o próprio círculo do sistema político dito consensual. Este sistema pressupõe que a política é governada por problemas objetivos que resultam de necessidades de ordem econômica e geopolítica mundial e não deixam espaço a escolhas alternativas no plano nacional.
Ele engendra também um efeito de gatilho duplo: de um lado, a direita e a esquerda tradicionais têm a mesma idéia "realista" dos dados do problema. Elas têm a mesma convicção de que estes dados propõem, como uma tarefa essencial aos governos nacionais, o cuidado de gerar, com os menores custos, as repercussões locais do fenômeno da mundialização, sejam elas questões de desemprego ou imigração. A concorrência entre ambas, portanto, não se funda mais sobre nenhuma oposição quanto às escolhas fundamentais, mas apenas sobre a afirmação de uma capacidade superior de serenar o problema nascido da conjunção entre a taxa de desemprego e a taxa de imigração. Cada um dos partidos tem somente um único argumento contra o partido adverso, a saber, que este último favorece a extrema-direita racista por não querer ou não saber solucionar o problema da imigração.
Poderíamos considerar tal demonstração de molas duplas como uma simples manifestação de oportunismo eleitoral. Cada um dos partidos deve resolver a quadratura do círculo: tomar a voz dos anti-racistas, denunciando a extrema-direita racista, e assumir a voz dos racistas, denunciando a incapacidade do partido concorrente para solucionar o "problema dos imigrantes".
Mas a questão é mais profunda. Seguindo a célebre fórmula marxista, a mistificação está dentro da própria questão. Para que o "problema dos imigrantes" possa ser resolvido, seria necessário, primeiro, que ele fosse formulado. E é precisamente isso que é impossível. Não que inexistam nas periferias das cidades francesas, como naquelas de muitas outras metrópoles, os problemas de violência e de insegurança ligados à presença de populações heterogêneas.
Mas todos estes problemas de coabitação precária não compõem um problema dos imigrantes. Pois, justamente, o termo "imigrante" recobre categorias de extrema heterogeneidade. E na França, particularmente, muitos destes "imigrantes", de quem se denuncia o comportamento, são franceses, visto que nasceram na França, de pais que a colonização tornara franceses.
A contradição dos fins declarados e dos efeitos obtidos é, portanto, esclarecida. Pretender dar cabo do problema da imigração por meio de legislações restritivas é querer uma coisa impossível, na prática. Mas esta solução imaginária de um problema informulável suscita um efeito bem real. Todas estas leis, de fato, emprestam figura e consistência ao conceito imponderável de "imigrante". E, ao dar consistência à figura do indesejável e provar que elas não triunfam sobre este indesejável, tais leis reforçam duplamente o discurso que diz, primeiro, que há um problema incontornável de estrangeiros indesejáveis e, segundo, que os partidos consensuais do governo são incapazes de resolvê-lo, sendo que apenas os racistas propõem as verdadeiras soluções.
O círculo torna-se, então, espiral: as medidas racistas destinadas a combater racionalmente o racismo só fazem por aumentar a sua legitimidade, pois, sozinho, ele gera sem entraves o imaginário dos problemas, deixando aos partidos consensuais a tarefa de dar-lhe uma fórmula razoável e de fracassarem em sua resolução. Esta espiral é a de uma forma de governo. Os realistas do consenso disseram suprimir toda a batalha de idéias ou de classes em favor da consideração exclusiva das necessidades objetivas e das soluções razoáveis. A evolução das novas formas de identidade e de racismo é o coeficiente desta operação. O paradoxo, então, é que o único terreno de conflito sobre o qual as forças consensuais entram em competição lhes é dado pelo exterior, pelos extremismos "desarrazoados" de que eles racionalizam os problemas e as soluções. Isso também quer dizer que este exterior, ou este resto de consenso, torna-se, pouco a pouco, a sua lei mais interior.

Tradução de José Marcos Macedo.

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