São Paulo, domingo, 4 de maio de 1997
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Uma resposta social aos pessimistas

ALAIN TOURAINE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Podemos responder ativamente ao triunfo do liberalismo econômico ou nos resta somente, como aos europeus de meados do século 19, denunciar este triunfo e as injustiças que ele acarreta e apoiar apenas as iniciativas humanitárias que se empenham em aliviar a vida dos mais pobres? Ou será que podemos, desde já, realizar as reformas e restabelecer um certo controle político e social da atividade econômica?
Ao observar o mundo atual, sentimo-nos quase obrigados a aceitar a primeira resposta -a mais pessimista. Não só algumas sociedades entraram em franco colapso diante da abertura de sua economia -como a Albânia, a Bulgária e até mesmo, em boa parte, a Rússia e a Ucrânia, ao passo que outras geravam a cisão entre os que participam do desenvolvimento econômico e os que deles estão excluídos, como é o caso da China-, mas também foi constatado um aumento vertiginoso das desigualdades sociais em países outrora social-democratas, como a Austrália e a Nova Zelândia, e um crescimento um pouco menos acentuado das iniquidades nos Estados Unidos e na Inglaterra. A política parece impotente na tarefa de limitar ou represar a segunda revolução capitalista, que nós chamamos de globalização.
Essa impotência acarreta o êxito dos repúdios intelectuais de cunho radical. Nos Estados Unidos, desde a Guerra do Vietnã, o mundo da juventude e, sobretudo, o meio universitário adotaram cada vez mais uma atitude de rejeição da sociedade e de afirmação de uma contracultura intelectual ou musical, enquanto o desconstrutivismo, isto é, a crítica radical das categorias de ordem social e cultural, tornava-se a escola de idéias predominante. A evolução é a mesma no Reino Unido, país que seguiu uma política liberal ainda mais radical que a de Reagan.
Em toda a Europa, desaparecem ou enfraquecem as políticas social-democratas. Sob tal nome se incluem, por vezes, políticas liberais, como a de Tony Blair, no Reino Unido; por vezes, os partidos socialistas se enredam em contradições que os paralisam, como no caso da Alemanha e França; por vezes, eles simplesmente perdem o poder devido à crise interna, como na Espanha. Em quase toda parte, os sindicatos se enfraquecem, a exemplo das outras mediações sociais; por toda parte, hoje em dia, cresce a desconfiança com relação aos partidos políticos, como no caso extremo do Japão, mas também na Itália, França e, quase na mesma medida, na Inglaterra e EUA.
A América Latina oferece uma visão ainda mais desoladora. Enquanto os discursos sobre a democratização soam cada vez mais ocos, vemos aumentar as desigualdades, embora, no Brasil, o Plano Real tenha produzido efeitos sociais favoráveis a curto prazo. E em nenhum lugar vemos um governo de centro-esquerda.
No norte do continente, praticamente não há gestão política e social da evolução econômica, e foi o FMI que permitiu ao México superar a crise de 1984, ao passo que os governos colombiano, venezuelano e, recentemente, equatoriano parecem incapazes de administrar o conjunto de seus países, de restringir a miséria e a violência. Desde o sucesso do Plano Cavallo, e apesar da gravidade do "efeito tequila" sobre a economia argentina, é a recuperação econômica deste país que o leva adiante, sem que o poder político intervenha muito. Mesmo no Brasil, a capacidade de agir do governo é muito fraca para estancar a violência urbana e rural.
Ainda que não se acredite na possibilidade de uma sociedade liberal, ou seja, de uma auto-regulamentação dos mercados, será que se deve concluir, de modo pessimista, que a transição liberal irá durar ao menos 50 anos e que, durante esse período, nada se poderá fazer de melhor senão buscar soluções pessoais, retirar-se do jogo ou, então, lançar vitupérios contra uma situação social que não é capaz de ser transformada?
Ora, este pessimismo, mesmo que produza obras intelectuais ou artísticas importantes, não é sustentável, em primeiro lugar, porque não descreve a realidade de maneira justa.
Há que se notar, primeiro, que ele não conduz à defesa das vítimas da evolução econômica, mas, ao contrário, dos grupos profissionais mais protegidos e mais capacitados à mobilização para salvaguardar as vantagens concretas e as proteções eficazes. O que estes grupos defendem é, muitas vezes, honroso, mas sua ação acaba por aumentar a distância entre os que têm e os que não têm. O caso dos aeroviários tornou-se célebre em muitos países, e presenciamos, na França, a formação de um amplo movimento de protesto para a defesa não do seguro social de todos, mas de vantagens particulares, notadamente em matéria de aposentadoria, que certas categorias profissionais haviam conquistado.
Tal situação é bem evidente na América Latina, onde se constitui uma vasta classe média ligada ao Estado e por ele sustentada. Não se trata de condenar estes movimentos de defesa, mas de fazer notar que há uma enorme distância entre estas reações corporativas e a crítica radical de um sistema econômico acusado, com toda a razão, de aumentar a desigualdade social e a exclusão. Do mesmo modo que vimos no século 19 as profissões e os ofícios pré-industriais se defenderem -por vezes, por meio de ações revolucionárias- contra o triunfo do capitalismo industrial, vemos hoje resistir a sua destruição o intervencionismo econômico do Estado, que não se deve confundir com o "Welfare State" (Estado de bem-estar social), digno de ser preservado, e mesmo reforçado, onde já existe.
Em segundo lugar porque, para além dessas resistências próprias às categorias, vemos surgir movimentos de resistência aos resultados mais negativos do neoliberalismo, o que mostra que a prática social se encontra afastada de muitas teorias sociais e um passo à frente delas.
O que vemos primeiro é a resistência à "flexibilidade" do trabalho, isto é, a oposição a sua crescente precariedade. As recentes greves na Alemanha, na Coréia do Sul e na Bélgica mostraram uma resistência cada vez mais ferrenha à destruição do emprego. Mas, o que me parece dotado de uma importância ainda maior no atual momento, é a oposição propriamente política às ideologias e aos movimentos reacionários de defesa do "núcleo da sociedade" contra as minorias ou os estrangeiros.
A recusa ativa destes nacionalismos agressivos, xenófobos ou até mesmo racistas, assume diversas formas segundo o país, mas, em toda parte, ele conta com grande eficácia, pois fala em nome de todos, e não apenas de alguns. Há tempos se fala na Alemanha e no Canadá sobre movimentos de cidadania, mas, recentemente, vimos na França formar-se e se desenvolver a toque de caixa, e sem nenhum respaldo político ou sindical, alguns movimentos de luta contra a xenofobia ou o racismo. No Brasil, como em outros países, o que pode encontrar eco na população não é a defesa de certas categorias, mas a luta da própria cidadania contra a violência que se abate sobre os sem-terra ou jovens marginalizados das cidades.
Não foi assim que começou a mobilização operária na Inglaterra e na França no início da Revolução Industrial, com o cartismo na Inglaterra e o republicanismo na França? Podemos notar tendências semelhantes na Argentina, onde o despertar político é mais evidente que o despertar social, e também no Chile, onde cada vez mais os dirigentes políticos e econômicos compreendem que se deve dar prioridade à luta contra as desigualdades sociais, cada dia mais patentes à medida que o país enriquece. E quem há de negar que o impacto decisivo do movimento zapatista no México foi, antes, decorrência do apelo à democratização do regime do que à defesa de comunidades de que a maioria dos mexicanos se sente afastada?
Eis a resposta que se deve dar aos mais pessimistas: de fato, ainda é muito cedo para se ver a formação de novos movimentos sociais, mas já são patentes os movimentos de cidadania que defendem sobretudo a democracia e lhe emprestam um conteúdo que, em geral, se perdeu para ela. Os governos sabem bem disso, mesmo que suas ações não correspondam a suas declarações, como é o caso de Jacques Chirac, na França. O retorno de Alfonsín à cena política da Argentina decorre do fato de ele se ater a essa linguagem. E podemos esperar que FHC, cuja capacidade de ação será reforçada daqui em diante, tomará como rumo -mais do que no início de seu governo- uma ação voltada a sedimentar a integração nacional e, portanto, a cidadania real de todos.

Tradução de José Marcos Macedo.

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