São Paulo, segunda-feira, 5 de maio de 1997
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Hon-nê e Tatemai

JOÃO SAYAD

Se eu encontrasse um gênio da lâmpada mágica, faria vários pedidos, alguns inconfessáveis. Na área acadêmica, há muito tempo que tenho desejos bem definidos.
Em primeiro lugar, gostaria de saber como soa a língua portuguesa para um estrangeiro. Já me disseram que soa como mistura de francês (por causa do "erre" em palavras como rua e rato) misturado com espanhol. Nos Estados Unidos, sempre perguntam se estamos falando russo. O gênio me faria nascer de novo, e então poderia ouvir um brasileiro falando como se fosse a primeira vez.
O segundo desejo é descobrir uma lei fundamental para explicar o Brasil, tão simples como a lei da gravidade explica a física.
No sábado, almocei com um empresário japonês muito simpático, de bom humor e conhecedor de muitos países do mundo. Mesmo sem ter encontrado a lâmpada mágica, o empresário formulou a explicação sobre o país.
Segundo ele, no Japão existem dois discursos: o hon-nê e o tatemai. O hon-nê é o discurso verdadeiro, sincero, que pode ser dito aos amigos. O tatemai é o discurso oficial, diplomático que contorna a verdade.
Os japoneses, por exemplo, são grandes defensores do livre comércio, do mercado e das regras do FMI quando fazem discurso tatemai. No discurso hon-nê, confessam que protegem fortemente o mercado doméstico, usam o sistema de crédito para incentivar indústrias ou atividades que considerem prioritárias e decidem investimentos conjuntamente com o governo.
Os americanos não têm discurso tatemai. Falam sempre em hon-nê. Se a verdade for diferente do discurso, como no caso do livre comércio nos Estados Unidos, por exemplo, não quer dizer que estejam mentindo. Continuam falando com a intenção da verdade, que passam a ver diferente. Por isso os americanos são relativistas -lá tudo é verdade, dependendo do ponto de vista.
Conversamos mais um pouco e o amigo japonês concluiu que nos países latinos em geral -e no Brasil, em particular- só existe discurso tatemai. A conclusão não é moralista, nem inspira indignação contra a palavra oficial do governo, dos intelectuais ou da opinião pública. O amigo japonês não afirmou que os brasileiros são mentirosos, diplomáticos ou formais.
A descoberta é mais grave -concluiu que aqui se tornou impossível fazer discurso hon-nê. A verdade se perdeu para sempre. De tanto contornar a verdade e aparar as arestas das coisas sobre as quais não podemos falar, a verdade deixou de existir.
A diferença é sutil e difícil de explicar aos ocidentais. Para o americano, tudo é verdade. Para o brasileiro, tudo é mentira. Os americanos levam seus discursos muito a sério. Os brasileiros consideram discursos simplesmente discursos, mais interessantes do que a verdade. O resultado final é o mesmo -nos Estados Unidos, muitas verdades. No Brasil, nenhuma verdade.
Talvez alguns exemplos de debates e declarações da semana passada possam esclarecer.
Em debate na Faculdade de Economia, o professor Eduardo Gianetti defendia a privatização da Companhia Vale do Rio Doce brilhantemente, argumentando que o dinheiro do governo deveria ser dedicado à educação básica. Continuando a defesa, argumentava que o Brasil gastava muito em educação relativamente aos países do Sudeste asiático. Que a educação não precisava de mais recursos e sim de mais eficiência na utilização das verbas já destinadas à educação.
O ministro Kandir, no Caderno Especial da Folha sobre a Vale, argumentava que a Vale deve ser vendida porque o governo não tem recursos para investir no crescimento da empresa. Esqueceu de dizer que há 25 anos as empresas estatais brasileiras são proibidas de tomar empréstimos para não aumentar o déficit público. Déficit é variação de dívida pública. Portanto, mais empréstimo para empresa estatal é igual a déficit público.
A Vale também poderia emitir novas ações e aumentar o capital. O ministro não mencionou estas alternativas.
Em seminário sobre fundos de pensão, argumentei que a liquidez dos fundos de pensão do mundo inteiro não é poupança nem investimento. É simplesmente liquidez que pode se mover de um país para outro, de uma aplicação para outra e portanto criar instabilidade. São US$ 80 bilhões no Brasil, trilhões de dólares nos Estados Unidos. A conferência continuou com a intervenção de um líder político nacional, que reclamou contra a falta de realismo e contra o excesso de teoria dos economistas.
Dizem que perdemos US$ 3 bilhões de reservas nos primeiros três meses do ano. Não existe nada mais real do que perder caixa em dólares. O governo espera que a reforma administrativa permita reduzir os custos de pessoal em reais e, sem aumentar exportações ou reduzir importações, traga os dólares de volta.
Não são mentiras. Também não são verdades. Talvez a mentira só possa existir onde exista a verdade. Concluímos que a mentira só existe no Japão, assim como a verdade.

E-mail:jsayad@ibm.net.br

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