São Paulo, segunda-feira, 5 de maio de 1997
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Alpinista encara a rebeldia do Tupungato

RODRIGO ASTIZ
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Escalar os mais de 6.000 metros do monte Tupungato, na Província argentina de Mendoza, é uma verdadeira lição sobre os efeitos da altitude no organismo humano.
Dois meses depois de optar pela subida, montamos em duas das seis mulas de nosso comboio saindo do refúgio de montanha do Exército argentino e entrando no vale do rio Tuna, a porta e o caminho para o coração da cordilheira dos Andes.
Andar em uma mula não é fácil para quem não tem experiência, muito mais se você faz isso durante 12 horas seguidas.
As mulas em geral não obedecem, param e andam quando querem, empacam no meio do rio, numa luta à parte.
Essa é a primeira provação imposta pelo Tupungato. No primeiro dia, percorremos mais de 25 quilômetros e fizemos um desnível de 1.800 metros, o equivalente a subir duas vezes e meia a altura da serra do Mar, chegando ao primeiro acampamento, a 3.800 metros.
Paisagem mutante
À medida que subimos, a paisagem se transforma. Na entrada do vale avistam-se árvores, arbustos e vegetação rasteira.
Aos poucos, a vegetação vai desaparecendo até que sobram apenas pedras e guanacos, animais que dominam as altitudes dos Andes e são parentes das lhamas.
Em várias oportunidades, dá para ver bandos de guanacos correndo pelas encostas a mais de 4.000 metros de altura.
Quando descemos das mulas, no local do primeiro acampamento, sentimos qual seria a segunda provação. Quanto maior a altitude, menor a concentração de oxigênio no ar -e, respirando menos oxigênio do que o de costume, o corpo logo reclama.
Sente-se um cansaço mortal, falta de ar, de apetite e enjôo. E foi assim que passamos essa primeira noite (e muitas outras) na montanha, dormindo ao ar livre.
Junto conosco estavam o sargento Daniel Pintat e o soldado Osvaldo, nossos guias e companheiros nos dois primeiros dias de montanha. Eles ajudaram a amenizar o mal-estar da altitude oferecendo o eficaz mate com açúcar.
Ajuda castrense
Os militares argentinos são um capítulo à parte. Sem eles, a viagem não teria sido possível, já que nos apoiaram com a logística para a aproximação da montanha.
O contato começou, pelo telefone, com o major Valentin Ugarte, do Regimento de Infantaria de Montanha, dos Andes.
Ele e muitos dos militares do regimento são andinistas no sentido mais amplo da palavra: não são apenas bons montanhistas da cordilheira dos Andes, mas também apaixonados pela vida na região.
O major Ugarte, por exemplo, explora o Tupungato há mais de 15 anos, está abrindo um caminho novo e conhece toda sua história.
Foi ele quem destacou o sargento Pintat para nos levar com as mulas até o passo para o vale do Tupungato, conhecido como Portezuelo del Fraile.
O susto
Junto com a excitação, um certo receio toma conta dos andinistas, e a expedição toma proporções antes não imaginadas.
Uma coisa é ouvir as orientações pelo telefone. Outra é chegar até lá e ver a dimensão da montanha e das dificuldades a enfrentar.
"Cuidem-se e não se arrisquem à toa. A montanha não vai sair daqui, e sempre haverá outras chances para escalá-la". Essas foram as últimas palavras de Pintat antes de se despedir. Só dali a dez dias ele voltaria para nos buscar.
Andar no lombo das mulas pode ser até desagradável, mas elas levam o peso das mochilas. Agora, essa árdua e bem pesada tarefa seria só nossa.
Com 30 quilos nas costas cada um, começamos a descida de mais de 500 metros rumo ao fundo do vale do rio Tupungato.
Réveillon
O objetivo agora era chegar ao pé da montanha para armar o acampamento, base de onde partiríamos para a escalada.
Em 31 de dezembro, montamos nosso primeiro acampamento às margens do rio Tupungato, com a montanha atrás de nós. E passamos o réveillon dormindo.
Nunca havíamos ficado tão isolados. Estávamos no meio dos Andes, a pelo menos dois dias de viagem do refúgio militar.
Não tínhamos rádio e não havia mais ninguém. Nem aviões cruzaram essa região: as rotas passam 80 km ao norte.
Além disso, os efeitos da altitude sobre o organismo são bem pesados. A todo momento, lembrávamos de uma frase de Pintat que se tornou o nosso lema: "Caminhem como velhos para chegar como crianças". É preciso andar devagar, parando para respirar.
Tudo isso faz o estado físico e psicológico variar muito. Uns acordam de manhã animados e dispostos. Outros raramente se sentem bem de manhã.
À tarde pode ocorrer o inverso. Aquele que acorda bem fica mal, e o outro melhora. Isso é bom porque um pode animar o outro.
Rio café-com-leite
O rio Tupungato nasce do degelo das geleiras da montanha e corre no sentido sul-norte, chegando até a região do Aconcágua.
No começo do vale, o que parecem pequenos morros são, na verdade, os restos da geleira que cobre toda a região, coberta agora por areia e pedras.
Nesse trecho, por exemplo, todo o rio sai de uma caverna de gelo. Sua água é carregada de sedimentos e tem cor de café-com-leite.
Nos primeiros dias fomos obrigados a tomar dessa água, já que não havia outra opção melhor.
Não existe vegetação, exceto por uma pequena planta que insiste em crescer no meio das pedras. Vimos apenas uma espécie de pássaro e uns poucos insetos.
Durante o dia, o Sol brilha, mas o vento não deixa a temperatura subir muito. Andávamos vestidos da cabeça aos pés.
Nesse ambiente, fomos trabalhando e avançando em direção à montanha. Esse tempo, 3 a 4 dias, serve também para a aclimação, ou seja, para que o corpo se acostume a essa nova condição.
Nossa alimentação se resumia a café da manhã e jantar. Durante o dia, simplesmente não sentíamos fome. Pela manhã, mingau de leite em pó com Neston e chá. No jantar, sopa instantânea e um pacote de macarrão ou arroz desidratado.
Cada um de nós Bebia três litros de água com Gatorade em pó por dia. Com essa dieta, emagrecemos sete quilos durante a viagem.
A conquista centenária
No dia 20 de abril de 1897, o suíço Mattia Zurbriggen tornou-se o primeiro homem a pisar o cume do monte Tupungato, a 6.580 metros acima do nível do mar.
Dois meses antes, ele também havia feito a primeira ascensão do Aconcágua, de 6.890 metros, a mais alta montanha da América.
Zurbriggen fazia parte da expedição do explorador e naturalista inglês Scott Fitzgerald.
Cem anos depois, o monte Aconcágua tornou-se uma das montanhas mais escaladas e visitadas do planeta. Por sua vez, o Tupungato foi quase esquecido.
Qual o motivo? Talvez a resposta esteja no seu próprio nome. Tupungato significa selvagem no idioma dos índios aimará.
Esse também era o nome de um cacique da tribo temido pelo seu caráter e atitudes.
Impressionados com as tempestades e com os ventos fortes que castigam a região e vendo nisso semelhanças com o comportamento do cacique, os aimarás batizaram o monte de Tupungato.

Hospedagem - Hotel Itália (Belgrano, 574, tel. local 0622/88-176) é uma opção barata e confortável. O apartamento simples custa 18 pesos (1 peso vale US$ 1), e o duplo, 30 pesos, com café. O hotel Turismo Tupungato (Belgrano, 1.060, tel. local 0622/88-610 e fax 0622/88-007) é maior e mais caro. Custa 50 pesos por pessoa, com pensão completa. A cidade tem também um camping (El Peral, a 4 km do centro) e albergue municipal (Los Cerrillos, a 20 km do centro). Informações na Secretaria do Turismo, tel. local (0622) 88-097 e 88-289 e fax (0622) 88-595.

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