São Paulo, terça-feira, 6 de maio de 1997
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Leia o despacho do ministro

Conflito de competência nº 19.686/DF (97.0026159-0)
Relator: O senhor ministro Demócrito Reinaldo
Suscitante: União; Réus: Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES e outros
A União Suscitou Conflito de Competência perante esta egrégia Corte, com pedido de liminar de sobrestamento de processos e suspensão de ineficácia de medidas initio litis, já deferidas pelos Juízos suscitados, sob fundamento da existência de numerosas ações populares aforadas nos Juízos Federais, em diversos Estados.
Justificado estar caracterizada a conexão entre as diversas ações e considerando prevento o Juízo da 4ª Vara da Seção Judiciária Federal do Pará, pede, em face da lei (art. 115, I, do C.P.C. e art. 5º, parágrafo 3º, da Lei nº 4.717/65), o sobrestamento dos processos das ações populares já aforadas e enumeradas na inicial, bem assim, a suspensão da ineficácia das liminares, até agora concedidas, e indica, de logo, o juízo competente.
Determinei, em despacho, a emenda da inicial, pela necessidade de informações mais detalhadas, vindo-me os autos conclusos, nesta data, com a efetivação das diligências.
Decido
Observa-se, prima-facie, cuidar-se de pluralidade de ações populares, promovidas por autores diversos, todavia, em juízos diferentes, com a mesma competência territorial, e todas elas com igual objetivo: o de sustar (ou anular) o leilão da empresa Vale do Rio Doce, já ultimado o procedimento licitatório. Ressalte-se, por oportuno, que as partes, em verdade, são as mesmas, porquanto, em ações dessa natureza, a parte ativa é o autor popular, pouco importando a identificação individual.
Há uma multiplicidade de demandas, mas todas com uma única finalidade: a de obter uma sentença declaratória da nulidade do leilão (ou a respectiva suspensão). As ações (embora aforadas perante juízos diversos) são, na definição legal, conexas (Lei nº 4.717/65, art. 5º, parágrafo 3º, Código de Proc. Civil, arts. 46, III, 103 e 106 e art. 115, III), fixando-se a competência do juízo pela prevenção (art. 219 do C. de Proc. Civil).
É que o juízo da ação popular é universal (como, ad-exemplum o da falência, o do inventário): a propositura da primeira ação previne a jurisdição do juízo para todas as subsequentemente intentadas contra as mesmas partes e sob a égide de iguais fundamentos. In casu, em se tratando de demandas populares propostas em juízos diversos (mas, com a mesma competência territorial), a prevenção se determina pela citação válida (C. de Proc. Civil, art. 219).
A utilização do instituto da prevenção, como critério de alteração da competência do juiz, não impõe uma conexão de causas absolutamente idênticas, iguais (quanto aos fundamentos e ao objeto); basta que (as ações) sejam análogas, semelhantes, próximas, nem que os fundamentos dos pedidos (em cada uma delas) coincidam, em sua inteireza. A lei se contenta, como afiançam os juristas, que, apenas, parte do pedido ou arte da causa de pedir seja idêntica para que haja conexão de ações. "A coincidência de todos os componentes da causa de pedir e do pedido é exigida para a caracterização da identidade de ações, requisitos próprios à configuração da litispendência ou da coisa julgada e não para a conexão" (Nelson Nery, Código de Processo Civil, pág. 103). "O objeto da norma inserta nos arts. 103 e 106 é evitar decisões contraditórias: por isso, a indagação sobre o objeto ou a causa de pedir, que o artigo por inteiro quer que seja comum, deve ser entendido em termos, não se exigindo a perfeita identidade, senão que haja uma liame que os faça possível de decisão unificada" (STJ, Resp. nº 3.515, DJU de 3.11.91).
In hiphotesi, malgrado as numerosas ações (populares) visarem a um objetivo único, eis que todas elas se propõem ao alcance de um só desiderato -obstaculizar a realização do leilão, e, até, por uma via transversa, impedir a privatização da empresa (Vale do Rio Doce)-, ora postulando a nulidade de atos preparatórios (no todo ou em parte), ora requerendo diretamente a suspensão do citado leilão (ou a declaração de sua nulidade), ou, vindicando, de forma oblíqua, providências que, acaso acolhidas, levariam ao fim colimado (suspensão do leilão), diferem, entre si, em alguns aspectos, na fundamentação jurídica. Em algumas, se acoima de inconstitucional a legislação em que se embasa o leilão (ou os atos preparatórios deste), em outras, apontam-se ilegalidades no procedimento licitatório, em outra série, pede-se a exclusão de determinado bem (ou ações) da praça, considerando-se subavaliado o preço da empresa estatal, em uma ou algumas de suas partes ou no todo. Em qualquer das situações, a meta optada na pletora de ações é, sempre, una: inviabilizar o leilão, ou sob os mais diversos pretextos, impedir a privatização da empresa estatal. As ações são evidentemente conexas, senão pela identidade do objeto (ou da causa de pedir), mas, por serem análogas, semelhantes. Há, entre todas, um liame, um traço de união, que recomendam o julgamento por um só juiz. Seria, ao meu sentir, uma temeridade que cada uma delas fosse decidida pelo juiz sob cuja jurisdição se encontra, ainda. O resultado seria imprevisível; inevitáveis as dissonâncias entre as múltiplas decisões, com repercussão desfavorável ao conceito do Judiciário, como Poder Soberano.
Cumpre, desde logo, salientar, que as considerações expendidas, até aqui, condizem só e só com a motivação indispensável ao exame dos pressupostos inerentes à natureza da liminar pleiteada. Vale dizer: se não houvesse conexão para se fixar à competência do juízo, a hipótese seria de inexistência de conflito de competência, o que levaria ao indeferimento da própria inicial. O mérito -especificamente a indicação do juiz competente para julgar as ações- fica diferido para o julgamento do mérito do conflito.
Consoante dispõe a lei, "poderá o relator, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, determinar o sobrestamento do processo (C. de Proc. Civil, art. 120). A providência constitui imposição da lei e não fica ao talante do relator. "Não é faculdade, mas dever de ofício do relator, suspender o processo quando o conflito for positivo, a fim de se evitarem atos processuais que poderão ser inúteis" (Nelson Nery, Código de Processo Civil, pág. 378). "O Conflito positivo algumas vezes surge com a existência de dois processos em andamento perante juízos diversos... Mas isso pode trazer inconvenientes, acarretando despesas inúteis. Para evitar que tal aconteça, dispõe o art. 120 que o relator, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, pode determinar o sobrestamento do processo, ou processos, em que surgiu o conflito. A lei usa o verbo poder, no que há impropriedade, porque não existe faculdade para o relator, mas sim dever" (Celso Agricola Barbe, Cons. ao C. de Proc. Civil, vol. I, Tomo II, pág. 505).
No dizente à suspensão dos efeitos das liminares concedidas nas diversas ações, em juízo diferentes, a hipótese submetida, agora, a deslinde, é de todo em todo igual ao precedente julgado por este Sodalício e de que foi relator o ministro Américo Luz, pertinente ao CC. nº 2.302/MG. Naquele julgamento, o eminente relator integrando, ao seu voto, o parecer do Ministério Público Federal, concedeu a medida initio litis, deixou consignado:
"Cumpre a esta Corte pôr cobro à balbúrdia de natureza processual em que estão incidindo alguns juízes, ao contrariar, nas ações intentadas, o princípio da prevenção, e com isso acarretando esse grau de incerteza e perplexidade no trato do caso da Usiminas... Concedo a liminar, tendo em vista a urgência da questão suscitada e o faço acatando as ponderações judiciosas do eminente Subprocurador Geral da República, todavia, tornando insubsistentes os atos praticados. Comunique-se imediatamente" (RSTJ. fl. 31/99).
No julgamento do agravo regimental manifestado contra a citada liminar, proferi voto do teor seguinte.
"Sr. presidente, a medida liminar, ora sob apreciação, através de agravo regimental, é processualmente irretocável e está em adequação com a lei e os fatos. Ela adveio da indiscutível necessidade de pôr fim à proliferação de inúmeras ações aforadas em juízos diversos e em circunscrições judiciárias diferentes, e todas com um só fim: o de obstar a realização do leilão da Usiminas. Até hoje, do que foi possível apreender, existe em tramitação em vários Estados, três ações populares, duas ações civis públicas e um mandado de segurança. Todos com o objetivo único e ainda com decisões liminares conflitantes. Gerou-se, como observou o ministro Américo Luz, não somente uma balbúrdia, mas um imbróglio processual, tornando tormentosa a questão discutida e impossível de convergência de decisões em todas aquelas ações, a serem direcionadas ao mesmo fim, com despachos proferidos por juízes competentes e outros que não consoam entre si, e prelatados por juízes incompetentes. A decisão do relator transformou-se em providência absolutamente necessária para coibir o amontoado de ações, ajuizadas perante diversos juízes, inobservado o princípio processual da prevenção consignado na lei. Configurada a situação processual excrescente e caracterizado o conflito de competência outra alternativa não se vislumbrava ao nobre relator, senão a de definir logo no limiar do processo, o juiz competente, com a declaração da ineficácia das decisões firmadas por juízos incompetentes, desde que a insubsistência da declaração da incompetência que se opera "ipso jure", por força da regra específica inscrita no Código de Processo Civil" (RSTJ. vol. 31, págs. 114 e 115).
Muito mais grave é a situação que, neste conflito, se nos apresenta. E, por isso mesmo, muito mais efetiva deve ser a atuação do Judiciário.
É certo que a Constituição Federal abriu largos espaços estimulando a fiscalização, pela sociedade dos atos de governo, e, para tal fim, criando novos instrumentos, a exemplo das ações coletivas. Tornou-se, até, excessivamente intenso o exercício da cidadania, utilizando-se com frequência nunca d'antes observada, das vias judiciais. É o que ocorre, no caso. Mais de 20 demandas, com igual objetivo, inviabilizar a privatização de uma empresa estatal. E não diferem, substancialmente, uma das outras, ainda que partem, as mais das vezes, de premissas diversas (fáticas ou jurídicas), se o que pretendem é a busca dos mesmos efeitos de tutela jurídica, que, em todas, se pretendem. A disparidade de decisões, em cada uma delas e o inusitado meio com que cada cidadão usa e, até, abusa do exercício de seu direito, criou no país inteiro o fenômeno da expectação social: a sociedade vivencia o aguardo de providência imediata com a qual se ponha fim ao estado de pré-inquietação, levando o descrédito ao Judiciário, ao qual se tem como certo não dispor de instrumento eficiente e adequado para a sanação desse estado de coisas. Cristalizou-se a crença da opinião pública de que o Judiciário é um Poder inerte e impotente, quiçá inoperante, e que não dispõe de instrumental hábil a frenar a continuidade da indefinição e incerteza que se instaurou, como surgimento deste episódio. Mas, somente na consciência dos leigos a impressão pode perdurar. No sistema jurídico-processual vigente, o poder cautelar do juiz é amplíssimo, podendo não só utilizar-se das medidas acautelatórias enumeradas expressamente na lei, como determinar outras, que a sue prudente arbítrio julgar adequadas (C.P.C., art. 798) e, até, "antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial" (C.P.C., art. 273).
O tumulto que se estabeleceu em decorrência do aforamento de inumeráveis ações, justifica a medida de exceção. A liminar é o único remédio juridicamente adequado e que se tornou não só urgente, mas sobretudo necessário.
Fundado nestes argumentos, hei por bem conceder, parcialmente, a liminar postulada, com a execução das seguintes providências:
a) determinar, de logo, o sobrestamento dos processos referentes a todas as ações populares enumeradas na inicial;
b) suspender os efeitos de todas as liminares já deferidas no âmbito das ações populares mencionadas na petição inicial e sua emenda, e especificamente, aquelas deferidas pelos juízes da 6ª Vara Federal da Seção Judiciária de São Paulo -(que já se encontra em grau de recurso no TRF da 3ª Região) e ação popular aforada na 3ª Vara Federal de Ribeirão Preto, Seção Judiciária de São Paulo, respectivamente;
c) designar o dr. juiz federal da 9ª Vara Federal da Seção Judiciária Federal do Rio de Janeiro, para resolver, em caráter provisório, as medidas consideradas de urgência, nas ações sob conflito, cujos processos lhe deverão ser remetidos, mediante sua própria requisição e quando houver necessidade.
A indicação do juiz competente para conhecer de todas as ações e decidi-las será objeto de apreciação no julgamento do mérito do presente conflito.
Comunique-se esta decisão, via telex, ao dr. advogado geral da União e ao presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico -BNDES, bem assim, a todos os juízes sob cujas jurisdições se encontram as ações objeto deste conflito e ao presidente do egrégio Tribunal Federal da 3ª Região, com sede em São Paulo.
Publique-se, com urgência.

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