São Paulo, terça-feira, 6 de maio de 1997
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Fotos revelam Pixinguinha 'carinhoso'

DAVID DREW ZINGG
COLUNISTA DA FOLHA

Era o pior dos tempos e, musicalmente, o melhor dos tempos.
Era 1967, e os militares, calçando suas rudes botas do Exército, pisoteavam os frágeis sonhos brasileiros de liberdade.
Era um tempo de revolução, e jovens corajosos nutriam esperanças de ação subversiva em encontros mantidos em segredo por todo o país.
Enquanto se conspirava na clandestinidade, músicos brasileiros jorravam seus temas numa orgulhosa linguagem nativa, para servir de incentivo público à grandeza de espírito.
Foi nesse clima que se fizeram essas fotos do mestre Pixinguinha. Roberto Civita havia criado a revista "Realidade" para dar voz às aspirações do novo Brasil, dividido entre os caminhos torturantes da repressão e os sonhos de inevitável liberdade e grandeza. Eu fiz essas fotos para ele.
As fotos de Pixinguinha e outros representavam uma homenagem aos músicos que inspiravam o país oprimido, em sua ânsia de alcançar a liberdade.
Alfredo da Rocha Viana Filho era seu nome completo, mas duvido que sua própria mãe o chamasse assim.
Um grande fotógrafo, Alfred Eisenstadt, refletiu certa vez sobre o valor iconográfico de fotos antigas: "O que poderia ser melhor do que retratos desbotados num álbum fotográfico para nos mostrar o que já fomos e, portanto, o que ainda somos?", indagou.
"Existe algo melhor do que uma foto antiga para ressuscitar passagens semi-esquecidas de nossas próprias vidas, trazer à tona incidentes da vida de outros, também quase esquecidos (ou dos quais, talvez, nunca se tivesse tido conhecimento), fazer reviver os mortos e fazer os vivos se lembrarem de que também os mortos já foram jovens um dia?"
Elite
Essas fotos foram feitas nas ruelas estreitas do Rio de Janeiro antigo e nos salões particulares da abastada elite carioca. Foi uma época anterior à industrialização do mundo musical. As pessoas que faziam e tocavam música brasileira raramente ficavam ricas.
Para testar e apresentar suas novas composições, os músicos precisavam de uma platéia capaz de discernir. E, é claro, sua interpretação espontânea não seria prejudicada se o anfitrião abastado pudesse servir quantidades copiosas de bebidas importadas, sem precisar contabilizar o custo.
Frequentei e fotografei Pixinguinha, Caymmi, Baden-Powell, Tom e Vinicius em muitas dessas casas abertas.
A líder em termos de generoso apoio moral e líquido prestado à emergente MPB era a família Guinle, que financiara a primeira turnê internacional de Pixinguinha.
Essa viagem, que o levou a Paris e por toda a América Latina, foi compartilhada por seu histórico grupo Os Oito Batutas.
A casa de Jorginho Guinle continuou recebendo, com frequência, músicos brasileiros inovadores, tanto jovens quanto velhos, dando continuidade à tradição familiar de apoio aos artistas nacionais.
Outras casas em que os músicos eram bem recebidos eram as de Robert Lee (em Laranjeiras, o Morumbi carioca), de Bertie e Lourdes Faria (em Copacabana) e a de Vinicius de Moraes (no parque Guinle).
Na época em que Baden-Powell explodiu no cenário musical carioca e tocou no famoso show de bossa nova Bom Gourmet, ele frequentemente dormia debaixo do piano na sala de estar de Vinicius.
Os membros da esquerda intelectual eram frequentadores habituais da casa de Roberto e Zelinda Lee.
Essa era uma versão carioca da bela, porém temperamental e emocionalmente instável, Zelda Fitzgerald, mulher do romancista americano F. Scott Fitzgerald nos anos 20 e 30.
A chamada "esquerda festiva" atuou como caixa de ressonância e canal de divulgação das várias gerações que erguiam uma nova MPB a partir do tradicional choro, ao qual Pixinguinha estava misturando as novas influências "balançantes" vindas da África. Até mesmo Louis Armstrong dá o ar de sua graça nessa história.
Pixinguinha regalava seus amigos cariocas com histórias de como teria encontrado o trompetista de Nova Orleans na viagem de meio ano que fez à Europa em 1922.
Parece improvável que esse encontro tenha acontecido de fato. Segundo historiadores, Armstrong ainda não tinha arrumado condições para fazer uma viagem ao exterior.
Mas os dois monumentais músicos negros acabaram finalmente se encontrando de fato. O encontro se deu na década de 50, no Palácio do Catete, no Rio.
Louis, Pixinguinha e outro amigo meu, Duke Ellington, tinham em comum seu gênio musical e o fato de dedicarem um certo desprezo à realidade histórica.
Foi apenas mais ou menos recentemente que Jacob do Bandolim finalmente descobriu documentos que confirmaram a verdadeira data de nascimento de Pixinguinha, com uma diferença de um ano em relação ao dia que ele sempre anunciara.
Armstrong era notório improvisador quando o assunto era qualquer fato, e Duke simplesmente desaparecia por trás de uma cortina de fumaça criada por ele mesmo. Sua irmã costumava me dizer que Ellington era "um véu por trás de um véu por trás de um véu".
Pixinguinha estava em excelente companhia, tanto no sentido musical quanto no verídico.
Ele foi, com toda certeza, a estátua mais importante no desenvolvimento musical brasileiro da primeira metade do século.
Ao lado de Villa-Lobos e Tom Jobim, integra o triunvirato reinante da história musical brasileira, para mim.
Cada vez que fazíamos fotos juntos, eu me comovia com a doçura natural desse grande homem que compôs "Carinhoso".
O que permanece nas imagens que fizemos juntos é a postura gentil, porém real, do homem Pixinguinha.
Pixinguinha se portava como um imperador grande demais, mas profundamente carinhoso, do melhor que a vida tem a oferecer.
Duke Ellington, irmão de alma do sublime Pixinguinha, costumava reservar àqueles que mereciam sua aprovação suprema o termo "além da categoria". Pixinguinha, com toda certeza, era além da categoria.

Tradução de Clara Allain

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