São Paulo, quinta-feira, 8 de maio de 1997
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Maus hábitos

OTAVIO FRIAS FILHO

Entre os maus hábitos que a nossa cultura nos atribui está o de deixar tudo para a última hora, variante tributária daquele grande defeito nacional, a impontualidade, que herdamos dos portugueses. Um povo que chega adiantado à Era dos Descobrimentos e atrasado à Revolução Industrial dificilmente escaparia à sina de impontual.
Assim foi com os trancos e barrancos da venda da Vale, com a discussão pública que afinal se estruturou, mas no atropelo das últimas semanas, quando o assunto, aliás, já era fato decidido e prestes a se consumar. Sem que houvesse tempo para que nenhum deles fosse ponderado, os argumentos se enfileiraram, pró e contra.
Formou-se um equilíbrio, expresso tanto nas pesquisas de opinião como na queda de braço entre Executivo e Judiciário, que assumiu um aspecto de guerra campal. Nunca os adversários da privatização se mostraram tão aguerridos por uma causa tão defensável; nunca os privatistas pareceram tão truculentos.
Não é por acaso que a propaganda, em mais um de seus atos falhos habituais, recorreu ao ator Raul Cortez para apresentar a campanha pela venda. "Você decide" também no sentido de que já foi tudo decidido em seu nome, só lhe cabendo vir aqui fazer número no placar, depois de ter mudado de posição algumas vezes.
"Você decide", ainda, porque entre argumentos equiparados o veredicto é mais palpite do que opção. Como em toda questão controvertida, a saída só pode ser "atávica", como gosta de dizer Roberto Campos (ele próprio vítima de seus "atavismos"): depende da propensão de cada um, do laço entre seus sentimentos e idéias.
Disso decorre o simbolismo da venda de uma estatal que já traz a ironia do episódio no nome, como se estivesse fadada. Mesmo a dificuldade da alienação é sinal de um ponto de viragem, como se, depois de oscilar, a hegemonia se deslocasse de uma vez. Quem cruzou o Rubicão foi Collor; o próprio rio foi vendido agora.
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Ainda sobre maus hábitos, ilustrativa a decisão judicial recente em que uma corte americana negou indenização a uma pessoa que foi, tudo indica, vítima letal do tabaco. Prevaleceu o argumento de que o fumante está suficientemente alertado sobre os potenciais danos à vida e à saúde. Fica implícita uma série de pressupostos.
Não é a prevenção que propicia a longevidade (embora isso seja, evidentemente, verdade também), mas a longevidade que torna vantajoso todo um conjunto de cuidados antes negligenciáveis. Numa época de guerras e péssimas condições sanitárias, é mau negócio preocupar-se com colesterol ou risco de câncer.
Essas são cautelas que só valem a pena depois que a expectativa média de vida ultrapassou certo patamar. Todo aquele que saca contra a própria saúde passa a ser, então, um mau apostador, e a sociedade lhe recusa crédito. Quanto mais vivemos, mais temos de nos abster de gastar a vida, o que parece justo, apesar de irônico.

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