São Paulo, sexta-feira, 9 de maio de 1997
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Górki, um comunista contra o comunismo

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

A situação de Máximo Górki na literatura russa e mundial é, ainda e em parte, polêmica. Se é verdade que na ex-União Soviética o culto à sua pessoa e obra foi imposto, o sucesso de suas obras no resto do mundo revela um escritor maior, independente de sua ativa participação no processo político-social de seu tempo.
A polêmica, no entanto, persiste. Ela começou ainda em vida do autor. A 22 de outubro de 1927, estando Górki no velado exílio de Sorrento, a Academia Comunista, organismo supremo do pensamento soviético, abriu o debate sobre a classificação de "escritor-proletário" que o autor de "A Mãe", sem contestação até então, recebia de críticos, leitores, políticos e de si mesmo. Concluíram os acadêmicos que a classificação era irreal.
Górki não seria proletário de origem. Descendia de camponeses artífices, pequeno-burgueses. Ele próprio exercera diversas atividades, como vendedor de pássaros, caixeiro, pintor de ícones, padeiro, ferroviário, jornalista. Nunca foi operário industrial -a única categoria que, naquela época e naquele país, merecia a classificação de proletário.
Quanto ao estilo do escritor, os acadêmicos concluíram que Górki não se enquadrava na grande tradição nacional-realista, uma vez que sua obra tinha um indisfarçável caráter de reportagem romanceada, com predomínio do elemento autobiográfico, aproximando-se, assim, muito mais do romantismo do que do realismo.
Quanto à filosofia de Górki, foi difícil para os acadêmicos de 1927 extrair uma de suas obras. Na época do debate, estavam acesas, ainda, as mágoas abertas com a briga entre Lênin e Górki a respeito daquilo que foi chamado de "divisionismo" gorkiano. Trocada em miúdos, essa rusga, que só não foi fatal em suas consequências porque Lênin sabia que o seu opositor era um homem politicamente ingênuo, podemos assim resumi-la: Lênin era um marxista e Górki um humanista. Se despirmos ambos os termos de suas corrupções habituais, se atentarmos que o marxismo de Lênin era sobretudo comunista e que o humanismo de Górki era quase cristão, temos não apenas a causa da rusga e das mágoas, mas as suas consequências.
Lênin e Górki foram socialistas, cada qual à sua maneira. Em Górki, o socialismo não ultrapassaria a fase primitiva: amor aos homens, confiança no homem -aquele cristianismo russo que talvez mereça o nome de eslavismo. Górki não aceitava o problema da consciência tal como Lênin o expunha. Para Lênin, a consciência era um produto do ser social, ao passo que Górki acreditava que o ser social era produto da consciência. Lênin era um erudito, homem disciplinado intelectualmente, amante da lógica e da razão. Górki era autodidata, contraditório e sentimental -outra distinção que explica a saia justa anterior à revolução que ambos sonharam e realizaram.
É pasmoso que tenha sido justamente o sucessor de Lênin, o todo-poderoso Stálin, quem tenha patrocinado a reabilitação de Górki no país do proletariado. Apesar de os debates da Academia Comunista, em 1927, terem sido desfavoráveis ao escritor, alguns meses depois ele retornava de Sorrento e recebia a maior consagração oficial que um escritor já tenha recebido de qualquer país, em qualquer época. Stálin lhe deu tudo. Teatros, academias, museus, institutos e até mesmo uma cidade inteira às margens do Volga, Nijni-Novgorod, que recebeu o seu nome. A glória de Górki entrou numa fase totalitária. A Academia Comunista foi obrigada a engolir as restrições de 1927. Mas, e no resto do mundo? Desde as primeiras publicações, Górki conheceu o sucesso na Alemanha, na França e na Inglaterra, e, mais tarde, em quase todos os países. O fato de Stálin considerar Górki superior a Goethe poderia influir na URSS, mas não no resto do mundo, que demonizava o bárbaro de Moscou. Ter sido ou não um escritor proletário era questão local, que interessaria apenas aos comunistas. E Górki marcaria uma instantânea presença no panorama literário do início do século. Suas peças, seus contos e seus romances foram encenados e lidos em toda a parte. Não é sem fundamento que Otto Maria Carpeaux considera Górki "o salvador da literatura russa", acrescentando: "Sem a sua atuação, (a literatura russa) mal teria sobrevivido à tempestade da revolução seguinte".
Máximo Górki não foi apenas o elo e sucessor dos grandes nomes da literatura russa, mas foi o último grande nome da grande literatura russa. Apertados no tempo, amontoados na última metade do século 19, Tolstói, Dostoievski, Pushkin, Tchecov, Gogol e Turgueniev formariam a enchente que faria prever a vazante. A fertilidade que anunciava a esterilidade. Górki, nascido em 1868, e cuja produção regular começaria nos últimos anos daquele século, mas sobretudo nos primeiros deste, ficou situado, cronologicamente, num funil. Depois dele, um Béria seria mais útil ao regime.

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