São Paulo, sábado, 10 de maio de 1997
Próximo Texto | Índice

Raízes da tristeza

FERNANDO A. NOVAIS

Naturalmente, não poderia faltar, nesta mais recente coleção "brasiliana", a obra que lhe sugerira a denominação: eis-nos portanto diante da oitava edição desse "Retrato do Brasil" com que Paulo Prado, em 1928, havia impactado a "intelligentsia" brasileira. Nada mais justo, por se tratar de alguém que, já em 1919, juntamente com Capistrano de Abreu, começava a organizar a publicação da Série Eduardo Prado, "para melhor se conhecer o Brasil"; e em 1923/25 dirige, com Monteiro Lobato, a "Revista do Brasil", redigindo numerosos editoriais. A paixão pelo autoconhecimento (como brasileiro, como povo, como cultura) acompanhou todo o percurso desse refinado protagonista de nossa elite intelectual. Desde muito moço (nascera em São Paulo, em 1869), participa, já na década de 1890, em Paris, de nossa vida cultural, quer como inspirador, estimulador, mecenas, autor, em todos os setores das atividades artísticas, literárias, ou de estudos brasileiros; e assim continuaria até os seus últimos dias, morrendo no Rio de Janeiro em 3 de outubro de 1943, sendo o corpo trasladado para o cemitério da Consolação, na Paulicéia. Nessa sua persistente afeição pelo tema, expressa-se, em nível individual, um dos traços mais incisivos de nossa cultura intelectual: a obsessiva procura de uma definição de nossa identidade, a busca pertinaz pela delimitação do perfil, a tentativa infinita de desenhar o retrato. Para vislumbrar o significado de "Retrato do Brasil" na história de nossa inteligência, devemos, portanto, voltar-nos para a época de sua produção (1927/1928) e para a personalidade de seu autor. Rebento de uma das mais ilustres e antigas famílias de São Paulo (a "gens" Silva Prado), Paulo tipifica no limite a ascensão dessa elite modernizante, caracterizada pelo "brazilianist" Darrell Levi, e integra, assim, a galeria de personagens de seu livro "A Família Prado"; mas encarna, também, na sua fase fenecente, esse estilo aristocratizante de vida que parece ter marcado, entre nós, o senhoriato paulista do café. É, quanto a nós, esse entrelaçamento contraditório e inquietante que molda sua personalidade e aguça sua sensibilidade para os problemas de nossa cultura. Diletante engajado, cosmopolita caboclo, Paulo Prado gostava mesmo de mergulhar na leitura dos documentos históricos (por exemplo, as visitações do Santo Ofício, denunciações e confissões) que lhe permitisse devassar a alma de nossa gente; mas tinha que se afogar na papelada da Casa Prado-Chaves (exportação de café), que geriu por muito tempo, parece que com grande proficiência.
Premido por essas inquietações e estimulado por tais impulsos, Paulo Prado participa intensamente de todo o movimento cultural da década de 1920, culminando com a publicação, em 1928, do livro que sintetiza suas reflexões; em rigoroso paralelismo, por sinal, com seu amigo Mário de Andrade que, na mesma data, publica "Macunaíma, o Herói sem Nenhum Caráter". Mário, aliás, tivera acesso ao texto de Paulo antes da publicação, e dedicou ao amigo sua obra-prima. Por caminhos diversos, perseguiam o mesmo objeto, de difícil assédio, e há ressonâncias nos respectivos discursos: "No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente" é a abertura do romance-rapsódia de Mário de Andrade; "Numa terra radiosa vive um povo triste" é intróito do ensaio de Paulo Prado.
E é assim que este agora ressurge, revestido numa bela edição crítica, que cremos pode considerar-se definitiva. Efetivamente, o trabalho de Carlos Augusto Calil destaca-se pelo estabelecimento rigoroso do texto, elenco exaustivo da fortuna crítica e elaboração de sugestiva cronologia. Sem contar a "Introdução", em que observa, en passant, que o ensaio de Paulo Prado pode ser visto como uma prática avant la lettre da moderna história das mentalidades -o que aponta para a sua atualidade. De nossa parte, diríamos mais: ele trabalha nessa difícil camada intermediária que medeia entre as "velhas estruturas", da história tradicional, e os novos temas da "mentalité"; nessa esfera que, parafraseando Braudel, poderíamos chamar "estruturas do cotidiano". São observações que valorizam o texto, mas que não devem afastar-nos da preocupação de situá-lo no seu contexto; no final da década de 20, "Retrato do Brasil" aparece como um momento privilegiado dessa tomada de consciência de nós mesmos, desse afã de autoconhecimento, que é marca fundamental de toda a trajetória de nossa vida do espírito. E o seu significado aparece tanto mais amplo, quando observamos ser a primeira vez em que o problema se explicita diretamente como problema, sendo que anteriormente aparecia embutido e pressuposto nos vários discursos. Nesse sentido, o ensaio de Paulo Prado (bem como a rapsódia de Mário de Andrade) abre caminho, cria as condições para a "geração de 30" (Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr.) que iria enveredar pelos desdobramentos mais ricos na análise da questão permanente e obsessiva. Note-se que, para isso (quer dizer, para que fossem possíveis esses desdobramentos), seria preciso enterrar definitivamente a visão ufanista até então dominante, e esta foi precisamente a sua grande realização. O que aliás fica claro na reação irada dos ufanistas que tanto entristeceu Paulo Prado, confirmando sua visão. Pois, como bem lembrou Wilson Martins (cf. "Historia da Inteligência Brasileira", vol. 5, págs. 147 e segs.), ao contrário do que usualmente se diz, o ufanismo não é apanágio dos brasileiros, sendo antes marca característica das melhores famílias (franceses, americanos, russos ou búlgaros); o que sim é coisa nossa é a capacidade de perceber a falácia desse nosso ufanismo, e reagirmos masoquistamente afundando no pessimismo, com perigosa perda da auto-estima, e passarmos a acreditar ingenuamente no ufanismo dos outros, o que tange o ridículo. Ora, o que justamente Paulo Prado quis ultrapassar com seu ensaio era essa dicotomia entre ufanismo "naif" e pessimismo sinistro, para poder instaurar a fase analítica no tratamento do problema. Não foi entendido, sendo acoimado de pessimista, ficando muito triste, isto é, ainda mais brasileiro.
Em edição primorosa, lido à distância, "Retrato do Brasil" pode portanto ser apreciado em toda a sua importância, com toda a sua beleza; mas não deixa de expor também suas fragilidades. À frase luminosa de intróito, antes citada, segue-se: "Legaram-lhe essa melancolia os descobridores que a revelaram ao mundo e a povoaram", com o que se oblitera o fato de que a terra radiosa estava muito bem habitada por robustos índios tupis, guaranis "et alii", a respeito dos quais não se cogita saber se eram particularmente macambúzios ou excessivamente jucundos. Creio mesmo que essa exclusão deve ter irritado mortalmente Darcy Ribeiro que, no seu último livro, coroamento de toda uma obra que no limite discute o mesmo tema de nossa identidade, preferiu ignorar nosso ensaísta, nem o mencionando em sua alentada bibliografia. Com seu viés eurocêntrico, Paulo Prado paga o tributo de ser -quem não o é?- filho de seu tempo. E as reações contemporâneas também não foram todas filhas do ufanismo patrioteiro. Veja-se, por exemplo, Eduardo Frieiro que, já em 1931, publicava em Belo Horizonte um opúsculo para nos convencer de que "O Brasileiro Não É Triste". Ali, à idéia central do ensaio de Paulo Prado, isto é, a de que o brasileiro é antes de tudo um triste, e que essa tristeza promana da luxúria e da cobiça, contrapõe-se, comentando: (cito pela 2ª. ed., Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1957) "Típica explicação de moralista. Fragílima explicação para o caso, porque, a ser boa, se aplicaria a todos os povos da terra. Se a luxúria e a cobiça fossem causadoras de tristeza permanente, a humanidade inteira viveria sumida numa melancolia sem fim". Realmente, sendo a libido fonte de prazer, nunca poderia ser forjadora de tristeza, mas sempre de alegria. "Mais ça, c'est une autre histoire."

Próximo Texto: Raízes da tristeza
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.