São Paulo, sábado, 10 de maio de 1997
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Raízes da tristeza

SERGIO MICELI

Paulo da Silva Prado (1869-1943) era herdeiro primogênito de uma abastada família paulista de exportadores de café, industriais, banqueiros e políticos que, aos 21 anos de idade, recém-formado em direito em São Paulo, faz sua primeira viagem à Europa, por onde transitou quase uma década. De volta, assume crescentes responsabilidades nos negócios familiares, enquanto seu pai (conselheiro Antônio Prado) exerce o cargo de prefeito de São Paulo por mandatos consecutivos (1899-1910). Nos primeiros decênios do século, concentra recursos nas frentes de atividade -mecenato cultural, representação de interesses econômicos e trabalho intelectual, nesta ordem- para as quais canalizou o grosso de seus investimentos: edições subsidiadas de documentos históricos, patrocínio das artes plásticas, Semana de Arte Moderna, direção editorial da "Revista do Brasil", representante paulista no Comitê de Valorização do Café. Até então, sua atividade intelectual se resumira à redação de prefácios para obras de escritores amigos e a colaborações esporádicas em jornais e revistas.
Em 1925, ajuda a criar o tablóide modernista "Terra Roxa e Outras Terras", ao mesmo tempo em que o pai apóia a fundação do Partido Democrático, concorrente do partido estadual situacionista. Foi assumindo esses encargos sem descurar de prolongadas estadias anuais na Europa, das férias em fazendas dos familiares e da sociabilidade refinada no chalé onde vivia com sua mulher francesa na av. Higienópolis.
A essa altura da vida, bafejado por todas as formas de reconhecimento a que podia aspirar um dirigente de sua estatura, com quase 60 anos, faltava-lhe, no entanto, o status de autor, única moeda que não podia barganhar com as subvenções que vinha dispensando. A feitura desse "Retrato do Brasil" deve ser analisada à luz de suas necessidades de afirmação intelectual nos círculos modernistas e também em função das pretensões nacionais de mando (o pai morreria em 1929 com 89 anos) do clã familiar no calor da crise oligárquica. Enquanto o miolo do texto expressa o senso comum erudito dos círculos modernistas sobre a formação histórica brasileira, o post-scriptum constitui o rompante de um "varão de alta esfera" na iminência de se ver descartado no jogo político federal.
Conviria primeiro discutir as razões invocadas na presente edição para dar conta da força do livro. É bastante insólito que se procure ajuizar o valor de um ensaio histórico por seu estilo discursivo, em vez de se averiguar o teor substantivo do argumento analítico, ou melhor, pela dimensão estética em detrimento do ferrão explicativo. De outro lado, enxergar contundência na crítica política do "Post-Scriptum" é ainda mais equivocado pelo fato de não atinar quanto aos interesses do autor para dizer o que alardeia, e por considerar novidade um tom briguento encontradiço em todos os ensaístas e panfletários de esquerda e de direita naquela conjuntura.
Para situar o leitor no âmago das dificuldades que tornam tão pouco fotogênico esse retrato da sociedade brasileira, nada melhor que um resumo de suas propostas. No entender de Paulo Prado, o caráter nacional do brasileiro resultou da operação cruzada de dois impulsos que modelaram a experiência dos grupos étnicos ao longo de três séculos de vida colonial: a luxúria ou sensualidade incandescente sob quaisquer de suas formas e preferências sexuais, e a cobiça pela riqueza material que acabou direcionada para uma busca obsessiva de ouro. O problema não é exatamente discutir o fundo eventual de verdade dessa tese, mas sim de não se poder evidenciar quais as relações econômicas, sociais e políticas em que se estribam os processos de decantação dessas "taras" culturais. Em lugar de deslindar o processo de constituição dos grupos sociais estratégicos do experimento colonial, ou então, de construir os lineamentos de uma causalidade histórica, o autor prefere passar um pente fino nas obras dos viajantes, garimpando exemplos capazes de lastrear sua ladainha de imprecações eivadas de uma discreta reticência moral. Aliás, certas obsessões reiteradas ao longo do texto soam agora particularmente canhestras: a percepção etnocêntrica dos indígenas, tratados segundo os estalões éticos do viajante europeu culto, carimbados como verdade; a insistência em tratar quaisquer agentes sociais em função de seu posicionamento no espectro de estoques raciais disponíveis, como se dessa alquimia de tonalidades se pudesse derivar um conglomerado de disposições éticas; a utilização de uma linguagem supostamente sensual e pretensamente "poética" para dar conta de processos sociais complexos.
O darwinismo social oferece o substrato de idéias com que o autor vai compondo seu retrato do que se passou aqui. Juntem-se a isso os atavismos étnicos, os estímulos do ambiente físico, os constrangimentos climáticos, e o leitor poderá fazer uma idéia das tolices superlativas que povoam a obra. Na ausência de qualquer outra motivação de ordem política, intelectual, artística, religiosa, ou seja, não havendo quaisquer impulsos afetivos sublimados, "de ordem superior", os abusos no comportamento sexual e a idéia fixa do enriquecimento enredaram os habitantes do Brasil colonial no marasmo dos instintos, propensos ao escapismo, à melancolia, à tristeza, à cachaça, carentes de uma atividade mental e psíquica conducente a ideais mais elevados.
Não adianta esmiuçar os fundamentos da argumentação, porque não há mesmo como resgatar o caráter datado desse retrato com o qual mal se consegue dialogar sem uma pitada de bom humor e brincadeira. O fundo obliterante de sua apreensão da vida política brasileira no "Post-Scriptum" tem a ver com suas dificuldades em compreender a competição oligárquica na República Velha e, numa perspectiva mais pessoal, com as resistências para incorporar as mudanças estruturais que estavam tendo lugar nas suas barbas. A industrialização, a imigração, o movimento operário com a fieira de greves a partir de 1917, as insurreições tenentistas, apenas um desses processos desencadeadores da crise do sistema oligárquico é mencionado de raspão. Na sua visão de grande proprietário, os contornos da crise oligárquica parecem lhe escapar, a ponto de pretender explicar os processos sucessórios em função de cambalachos da politicagem, cancelando a sequência de acontecimentos que culminaram com a consolidação do poder paulista nos primórdios da Primeira República. Desse situacionismo, a família Prado foi grande beneficiária com as políticas de valorização do café. Prenunciando uma atitude política que logo adiante encontraria adeptos, justificativas e recursos políticos adequados, Paulo Prado acena com o terror do desmembramento, bem entendido, do separatismo paulista, o único que de fato calava fundo no imaginário político da época. As ameaças de guerra e revolução são pura retórica. Em 1931, em pleno governo provisório Vargas, Paulo Prado aceita a incumbência de presidir o Conselho Nacional do Café.
Chega-se enfim ao valor da obra como testemunho do universo ideológico dos mentores da primeira geração modernista e, nessa chave de leitura, os materiais de análise apresentados permitem uma visão de conjunto de quais os subentendidos, as categorias implícitas, os heróis, as recusas, os arroubos expressivos, os cacoetes de classe e de gênero, de todos esses elementos cognitivos apropriados, em medida variável, pelos intelectuais e artistas da geração modernista. Apenas a título de exemplo, uma leitura atenta de "Retrato do Brasil" é um caminho fecundo para se detectar as peças-chaves do imaginário cultural pulsante em obras com dicção autoral e perfil doutrinário tão diversos como "Raça" ou "Meu", de Guilherme de Almeida, "Vamos Caçar Papagaios", de Cassiano Ricardo, ou "Macunaíma", de Mário de Andrade, e mais, para se entender o espaço de acordo e dissensão em que se movimentavam as diversas correntes ideológicas modernistas, ou ainda, os princípios norteadores das orientações político-doutrinárias de suas lideranças.
O organizador Carlos Augusto Calil está de parabéns pelo capricho com que montou o volume, incluindo, além da introdução, escorço biográfico, resenhas, fortuna crítica e notas. Faria apenas um reparo ao seu trabalho. Tanto de um prisma didático como da perspectiva de uma história intelectual, considero inadequada a decisão de restaurar as citações efetuadas no corpo do texto, pinçando nos originais dos viajantes e demais fontes os trechos cortados ou reciclados pelo autor, com a desculpa de que não se dava nos anos 20 igual atenção ao rigor acadêmico.
Os enxertos efetuados nesta edição inviabilizam a apreensão dos procedimentos de que se valia o autor na prática de seu ofício, e para a qual estava mobilizando uma dada concepção do trabalho intelectual. No afã de aprimorar a fixação do que imagina ser o texto menos "degradado" ou mais completo, o organizador corre o risco de falsear o processo mesmo de construção do texto pelo autor.

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