São Paulo, sábado, 10 de maio de 1997
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Sexo, poder e sífilis

HELOISA PONTES

Doença das casas-grandes e senzalas, a sífilis, como mostra Gilberto Freyre, não parecia alarmar os "homens de bem" da sociedade colonial brasileira. Contraída pelo filho do senhor de engenho em suas precoces brincadeiras sexuais com negras e mulatas, era o atestado de entrada no mundo masculino adulto. Desvirginando-se por volta dos 12 anos, o menino exibia com orgulho as marcas deixadas pela sífilis em seu corpo. Mostrava, assim, que deixara de ser "donzelão".
Estranho ritual de passagem que, fazendo da doença uma espécie de tatuagem, sinal irrefutável daqueles que já "conheciam mulher", assegurava aos brancos a sua condição de homens feitos. Adquirida a sífilis, eles dispunham, no entanto, de um antídoto singular para escapar ou ao menos minimizar os seus efeitos: reincidir nos pecados da carne. Desta vez com a certeza de usufruírem as mulheres certas, isto é, virgens. "Mulecas de doze a treze anos" entregues a rapazes "podres de sífilis" corroboravam a crença "de que para o sifilítico não havia melhor depurativo que uma negrinha virgem" (1).
Bastante ineficaz como medida curativa, esse antídoto diz muito sobre os dispositivos de poder, maximizados pelo regime escravocrata. Diz também sobre a inusitada trajetória da sífilis no Brasil. De doença corriqueira no período colonial, transformou-se no maior problema de saúde pública na virada do século 19. Assim como ocorreu nos EUA e na Europa, a sífilis ganhou aqui uma visibilidade surpreendente e foi literalmente reinventada na época, como mostra Sérgio Carrara.
Segundo ele, a construção social da sífilis se deu no interior de um contexto mais amplo de discussões, que extrapolaram os contornos propriamente nosológicos da doença. Falar da sífilis nesse período é falar da sexualidade e da reprodução; das visões religiosas e científicas, na maior parte das vezes antagônicas, que se detiveram sobre o problema do desejo e de seu controle; dos debates sobre a condição e o estatuto dos indivíduos -se agentes livres ou sujeitos modelados por forças externas, inconscientes para uns, raciais para outros; da necessidade ou não de traçar políticas de controle da prostituição feminina, apontada como o foco principal de contaminação; das medidas de caráter repressivo e não apenas profilático, que foram propostas pelos adeptos da eugenia que viam na sífilis a maior ameaça ao aprimoramento das raças.
O pânico e a obsessão coletiva suscitados pela doença só são inteligíveis à luz de um pressuposto comum, partilhado por todos os agentes envolvidos na luta pela sua erradicação. Para eles, a sífilis comprometia de maneira irremediável a saúde dos homens, das prostitutas, das mulheres casadas e de seus descendentes contaminados. Pondo em risco, assim, os destinos das "nações" e da própria "civilização". Nesse contexto, ela ganhou um valor social e um tratamento discursivo até então inéditos na história das doenças corporais e psíquicas que afligiam a humanidade.
Em larga medida, como revela Carrara, pela atuação dos médicos. Construindo a sifilografia como um domínio nobre da dermatologia, eles souberam legitimar o seu trabalho dentro e fora do campo médico. Travaram, para tanto, um diálogo estreito com outras especialidades, como a medicina legal, a higiene, a eugenia, a psiquiatria e a medicina militar. Além disso, captaram e mobilizaram a atenção de forças e instituições externas à área médica: a polícia, o direito, a política, a religião.
O caráter altamente moral da sífilis, apto a condensar domínios tão amplos quanto os da sexualidade, da reprodução e da morte, explica em parte a intensa visibilidade social adquirida por ela. As "batalhas" acionadas em prol de sua erradicação também contribuíram nessa direção. Levadas a cabo pelos sifilógrafos, elas mobilizaram agentes envolvidos com a política de saúde pública e setores expressivos da sociedade civil. Por meio do rastreamento dos debates estabelecidos dentro e fora dos circuitos especializados no tratamento médico da sífilis, o autor reconstitui a trajetória de uma doença cujo impacto vai muito além de suas consequências funestas para os indivíduos que a contraíam. Como afirma Carrara, sem que se compreenda a "importância que a sífilis adquiriu enquanto causa de inúmeros outros males, e principalmente da degeneração da espécie, da raça e da nação, dificilmente se poderia perceber como os médicos conseguiram, com maior ou menor sucesso segundo lugares e momentos, intervir sobre questões socialmente tão delicadas, até então julgadas de ordem privada ou quase privada, como as relações sexuais, o casamento, a liberdade de escolha de tratamentos médicos, o caráter secreto da relação médico/paciente etc". Daí advinham as "energias" mobilizadas pela luta antivenérea, tanto aqui como nos EUA e na Europa.
Com a descoberta da penicilina, nos anos 40, a sífilis perdeu o poder social de mobilização que tivera. Mas ganhou, graças ao trabalho de Carrara, uma atualidade impressionante. De um lado, por iluminar os debates que se travam hoje sobre sua sucessora mais temível e avassaladora: a AIDS. De outro, porque, estruturada como conceito em torno de um emaranhado de representações e valores simbólicos, extrapola o interesse médico. Tornando-se, assim, na célebre formulação lévi-straussiana, "boa para pensar". Não por sua natureza nosológica, é claro. E sim, pelo tratamento inovador de Carrara. A criteriosa reconstituição da história da luta antivenérea no país; a perspectiva comparativa adotada para examiná-la; o mapeamento dos debates sobre a sífilis feitos na época nos EUA e na França; o manuseio da bibliografia internacional de ponta sobre o assunto; tudo isso já seria suficiente para a indicação do livro. Mas o autor faz mais que uma história institucional da doença e de seus especialistas. Valendo-se de sua formação de antropólogo, munido de um texto claro e bem escrito, lança novas pistas para o entendimento das relações entre sexo, poder e ciência.

Nota
1. Cf. Gilberto Freyre, "Casa Grande & Senzala", 31ª edição, Rio de Janeiro, Record, 1996, pág. 317.

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