São Paulo, sábado, 10 de maio de 1997
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A religião dos brasileiros

RITA DE CÁSSIA AMARAL

Desde seu surgimento, a umbanda sempre foi um fenômeno sociológico brasileiro. Com a alma e a cara do Brasil, antropofágica, no sentido oswaldiano do termo, a umbanda foi capaz de absorver, digerir e transformar em si própria, sob uma estrutura burocratizada, os mais diferentes sistemas religiosos. E absorveu ainda estruturas e categorias sociais do militarismo, da medicina, da malandragem, da política de favores, das populações marginais e marginalizadas. A vida e as crenças dos pobres brasileiros, mas também os padrões culturais dominantes. À umbanda aderem hoje todas as classes sociais, com os estilos de vida que a elas equivalem, e essa presença deixa marcas na religião em que exus, pretos-velhos, caboclos e baianos atendem aos problemas que atormentam qualquer ser humano, rico ou pobre. Vem sendo exportada para países da Europa e América do Norte, talvez pela extraordinária capacidade de se amoldar e absorver os diferentes contextos em que se insere.
Ela vem se internacionalizando. Está na Internet. Mas, se tem esse caráter universalizante, traduzindo-se para fiéis com diferentes expectativas e vindos de diferentes religiões, não se confunde em absoluto com estas, pois o resultado de conviver com todas e não optar por nenhuma -de viver o que Roberto Da Matta chamou de "o dilema brasileiro", o "escolher não escolher"- dá a ela feições únicas.
Apesar de andar meio "fora de moda" como objeto de estudo, a umbanda continua sendo a opção religiosa de um imenso número de brasileiros, e só isto já justificaria o interesse por compreender melhor de que modo esta religião se organiza e se mantém, num campo religioso que vem se tornando cada vez mais concorrente, pois a bricolagem que ela realizou há tempos hoje encontra possibilidades bastante amplas. Juntando fragmentos de todas as tendências, do mesmo modo como fez a umbanda no passado, reinterpretando e introduzindo elementos numa cosmologia particularizada, as pessoas criam, mais que uma religião brasileira, uma "religião pessoal". Por que, então, a umbanda vem se mantendo como uma das religiões favoritas dos brasileiros no final do século 20?
No livro de Lísias Negrão, é possível encontrar alguns elementos que ajudam a responder a estas e outras perguntas. Produto de uma vasta pesquisa documental (ela varre minuciosamente o noticiário da imprensa leiga e religiosa durante um período de 60 anos) e de campo (presença de entrevistadores assistindo aos cultos, no estilo antropológico), este livro nos mostra o modo pelo qual surge, se organiza e se institucionaliza a umbanda, especialmente em São Paulo. Mostra as dificuldades -decorrentes de suas origens negras e pobres- encontradas no processo de legitimação, mas também seu funcionamento estrutural e sua articulação política nas federações, grandes responsáveis pelo status de religião organizada e pelo diálogo desta com os poderes instituídos. Segundo Lísias, a umbanda se divide atualmente em umbanda federada e umbandas dos terreiros. A primeira, uniforme, oficial, de classe média, reconhecida como representante da umbanda no plano nacional e institucional. E as segundas, na particularidade dos terreiros, de pobres das periferias, onde cada mãe ou pai-de-santo é seu próprio papa, quem decide como deve ser a "sua" umbanda. Ambas não se excluem, mas a imagem pública da umbanda é sobretudo a imagem produzida pelas federações: a das festas de Iemanjá na Praia Grande, das festas de Ogum no Ibirapuera e outras, além das obras assistenciais, organizadas e patrocinadas pelas federações e pelos líderes umbandistas, que ditam as regras de como devem acontecer e decidem sobre as publicações religiosas e outras instâncias históricas de diálogo com a sociedade nacional.
Em sua argumentação de que a umbanda é ainda uma religião em formação (o que pressupõe a existência de um projeto, de um lugar aonde a umbanda deseja chegar), Lísias Negrão percorre ainda o panteão da umbanda, os cultos em diferentes terreiros e faz uma sociografia "ligeira" de algumas umbandas paulistanas. Ao discutir a ética da umbanda, aponta o caráter racionalizador e moralizador das federações, mais ligadas às classes médias, e que encontra eco nas classes inferiores, que por sua vez "elaboram justificativas moralmente sustentáveis para fugir aos rigores do ideal da caridade". Segundo Lísias, isso não significa que a umbanda seja aética ou antiética, mas que tem uma ética particular, pragmática, que não opõe valores idealizados às condições concretas, e sim as reconhece e aceita como são; como é típico das religiões de origem africana.
Da leitura de "Entre a Cruz e a Encruzilhada" fica, finalmente, a forte impressão de que a umbanda é a "religião brasileira", porque é marcada por dualidades de todos os tipos e que estas, mais do que dilemas aos quais seria preciso dar uma resposta, compõem o lugar privilegiado de onde a umbanda fala aos brasileiros. Elas são as opções e as escolhas. Na umbanda é possível escolher não escolher, comer o bolo e guardar o bolo, ser e não ser. Um espelho da alma brasileira.

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