São Paulo, sábado, 10 de maio de 1997
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Uma cultura da natureza

RENATO JANINE RIBEIRO

Faz tempo, me senti constrangido ao corresponder-me com uma amiga francesa: enquanto ela me mandava postais de igrejas, praças e castelos, eu lhe enviava animais selvagens e paisagens. Tudo era belo, mas me senti inferiorizado -como se nossa comunicação indicasse que, enquanto a Europa é cultura, o Brasil é só natureza. E isso aqui reponta por toda a parte, no hino nacional como na bandeira, que não só guarda do Império as cores que representam nossos minerais e vegetais, como também, para tratar do acontecimento histórico por excelência, do que deveria ser a grande ruptura -a instituição da república- não encontrou nada melhor que figurar o céu da noite de 15 de novembro de 1889. Como se a fundação do novo regime estivesse escrita nas estrelas, ou como se a história, convertendo-se em natureza, fosse neutralizada enquanto espaço distintivo dos homens.
É essa a importância da natureza na imagem que fazemos de nós, no "berço esplêndido": país recém-nascido (daí, a raiz "natus", que dá natureza), virgem para todas as oportunidades, ainda que não se realizem. Ou, talvez, para que não se realizem.
Seria interessante, aliás, comparar este papel que a natureza aqui cumpre e o norte-americano. Afinal, Simon Schama comenta, em "Paisagem e Memória", que a revelação ao mundo, por volta de 1850, das sequóias gigantes da Califórnia trouxe efeitos sensacionais à auto-imagem dos EUA, que contrapunham às catedrais medievais árvores enormes, mais velhas que Cristo.
Mas a América do Norte não ficou presa, como nós, de sua natureza. Ou por seu desenvolvimento, ou por ter feito a dura experiência da história em duas revoluções -as guerras de Independência e de Secessão-, ou mesmo por sua cultura de "self-government" desde os tempos coloniais, a dimensão propriamente humana de história e cultura gravou-se desde cedo naquele país. Nós, enquanto isso, nos condenamos a gravitar em torno de nossa natureza.
Daí a importância de uma coletânea como esta, em que a revista "Imaginário", do Núcleo do Imaginário da USP, trata do estudo da natureza brasileira. Esse dossiê contesta o senso comum que eu antes expunha, propondo-se fazer uma cultura da natureza, uma história da natureza.
Os artigos do "Dossiê Natureza" se dividem em dois grupos. No primeiro, trata-se mais dos cientistas, e em especial dos viajantes dos séculos 18 e 19, quando vários tipos de naturalistas (Miriam Moreira Leite) sucessivamente elaboram o conhecimento da natureza brasileira, culminando nos nossos grandes museus do século 19, como o do Ipiranga (Margaret Lopes). Desses cientistas, ressaltam Spix e Martius, cuja famosa viagem (1817-1820) Paulo Vanzolini reexamina em instrutiva análise.
Um segundo grupo é o dos artigos que têm em comum uma nítida dívida com a idéia de que os saberes são "constructos", ou seja, de que sua elaboração é contingente e atende a finalidades políticas ou, mais amplamente, de atribuição de uma significação ao mundo.
O primeiro deles, e talvez mais inquietante, narra como os brancos de Imperatriz, no Maranhão, constroem sua história (Regina Sader). Para se legitimarem como ocupantes, negam a humanidade dos primeiros donos da terra, os índios -convertidos, em seu imaginário, em bichos. Talvez por andarem nus, por não serem cristãos, não importa: o fato é que são animais, que podem ser apresados ou mesmo mortos.
Dario Sabbatucci, da Universidade Romana de La Sapienza, discute a contestação neo-indianista à dominação branca, nos EUA de hoje, e recorre a Erasmo e Tácito para mostrar como o Ocidente desde pelo menos 2.000 anos produz imagens que parecem contestá-lo, mas na verdade constituem uma negação interna a si próprio.
Os germanos de Tácito, ou o Lutero de Erasmo, são construções de uma sociedade que precisa forjar, para repeli-lo, o seu outro. Certamente o autor poderia lembrar o modelo inicial dessa produção interna da alteridade, que é a imagem grega do "bárbaro", que não fala grego e portanto supõe-se que não fale ("chilreia como os pássaros"), nem é capaz de viver livremente em sociedade e, por isso, precisa de um déspota. Negação do homem racional e de seu logos, negação do homem social e de sua "polis", o bárbaro é o negativo que valida o positivo, isto é, o helênico cuja linguagem, razão e sociabilidade são as verdadeiras.
Particularmente rica é a aplicação de categorias antropológicas como a da iniciação, por Adone Agnolin, à literatura de viagem dos séculos 15 e 16, e do rito de passagem, por Renato Queiroz, ao conto "A Hora e a Vez de Augusto Matraga", de Guimarães Rosa.
Agnolin mostra a continuidade que há entre as viagens à Ásia e as primeiras à América, acentuando em Colombo o objetivo de financiar, pelo ouro do Novo Mundo, a guerra ao muçulmano. Só me parece que ele poderia, como Stephen Greenblatt em seu notável "Possessões Maravilhosas" (Edusp), salientar a gradual recessão da busca do maravilhoso, que distingue Marco Pólo e sir John Mandeville, colocando-os à escuta do outro (ainda que de um outro fantasioso), e o inexorável avanço da busca do ouro, que faz Colombo e Caminha silenciarem o índio para só lhe atribuírem o que querem ouvir (a disposição a converter-se, a submeter-se aos reis de Espanha ou Portugal).
Finalmente, mas no começo, Marlyse Meyer conta como descobriu o que hoje se chama "imaginário", numa trajetória que partiu da literatura francesa reputada (Marivaux), mas depois se embrenhou no "segundo time" -"Sinclair das Ilhas", os folhetins do século 19, a novela de TV. São páginas não apenas saborosas, mas ricas de conteúdo, até porque permitem repensar o papel do sério e do vivido na cultura. E, se comecei esta resenha com uma anedota pessoal, foi exatamente para pô-la no diapasão desta autora que, no campo acadêmico, recusando a recusa do vivido em nome do sério, e do popular em nome do clássico, deu nova chave ao conhecimento da cultura popular.

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