São Paulo, sábado, 10 de maio de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Homens e machos

WALTER CENEVIVA

As técnicas de reprodução humana, no estágio científico hoje conhecido, ainda não excluíram a participação do sexo masculino, mas já puseram o macho para escanteio. Apesar do conteúdo trágico dessa avaliação, nota-se que o destino antes reservado, entre outros, a touros e cavalos de raça, não chegou a afligir a metade masculina da humanidade, pois tudo parece continuar como dantes. O fato, porém, é claro. A era da indispensabilidade do macho terminou para aquelas que, integrando a metade feminina do gênero humano, queiram percorrer o caminho da maternidade.
O paradoxo aparente (persistência do homem e dispensa do macho) é fácil de desfazer. Com a técnica da reprodução assistida -enquanto a clonagem não vem- a mulher pode engravidar sem qualquer contato com o fornecedor do esperma utilizado para formar o embrião nela introduzido.
Quem me chamou a atenção para esse inglório destino do macho foi a socióloga Neuza Maria de Sales Ribeiro, que me enviou um e-mail sobre análise, feita nesta coluna, a respeito do direito do clone. Ela ressaltou uma omissão minha. Passa a ser indiscutível a presença exclusiva da mulher na cadeia reprodutiva, sem a participação natural do macho, como vinha ocorrendo desde o homem das cavernas. Disse Neuza que o nó da questão está em que "pela primeira vez na história da raça humana o homem, o macho, pode ser descartado no processo de reprodução".
A contar dessas idéias surgiu-me outra, de importância jurídica, psicológica e sociológica. As leis reconhecem o direito do nascituro (o filho, ainda no ventre materno). Reconhecem os direitos da criança, mesmo a nascida mediante procedimentos nos quais inexiste relação sexual. Entre eles, o direito, atribuído a todo filho, de ter um pai.
No Brasil a lei nº 8.560/92 afirma o direito do filho de saber quem é seu genitor. Para tanto impõe ao registrador civil o dever de tentar obter a identificação do suposto pai, quando a mulher compareça ao seu cartório querendo registrar filho, sem indicar quem a engravidou. Em seguida, encaminhará certidão do assentamento feito e da informação obtida ao juiz competente, o qual mandará intimar o homem referido, para que confirme ou negue a paternidade. Se o indicado não comparecer ou negar sua responsabilidade, os autos irão ao Ministério Público para que este inicie a ação de investigação de paternidade, se houver documentação suficiente.
A lei mencionada confirma que todo ser nascido de mulher tem direito próprio de saber quem é seu pai, independente da vontade da genitora. Embora salutar, a lei apresenta lacunas. Não define, por exemplo, o direito da mulher à chamada produção independente, pela qual concebe formando o embrião com óvulo seu e homem desconhecido, numa clínica de reprodução assistida. Um tal direito parece indiscutível em face do disposto no artigo 5º da Constituição afirmador da igualdade jurídica entre o homem e a mulher.
Acontece, porém, que o filho assim nascido não está contido pelo direito da mãe. Alcançada a maioridade pode ingressar em juízo para tentar a identificação do homem que, mesmo involuntariamente e apesar das circunstâncias, é seu verdadeiro pai, o que me leva de volta ao começo desta crônica. Qualquer que seja o direito do filho, a reprodução humana tende a seguir reprodução dos irracionais. Como já acontece em relação a estes, poderão surgir reprodutores física ou intelectualmente qualificados oferecendo seu esperma para "produção" de boa qualidade, relembrando os sonhos do nazismo, em desenvolvimento, no mínimo, aterrorizante. O direito tem de se prevenir contra essa e outras hipóteses semelhantes.

Texto Anterior: Radiografia da polícia
Próximo Texto: Provão vai valer 10% na avaliação global
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.