São Paulo, sábado, 10 de maio de 1997
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"E a Justiça não socorre o dorminhoco..."

ANTONIO CICERO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Foi antiética a atitude do sr. Augusto Massi ao escrever artigo, publicado na Folha no último dia 24 de abril, sobre os finalistas de poesia do Prêmio Nestlé de Literatura. Ele não devia tê-lo feito, pois é também o autor do texto introdutório de um desses finalistas, isto é, de "Resumo do Dia", de Heitor Ferraz.
Não constitui atenuante o fato de que ele mesmo confessa ter assinado o referido texto, pois isso não o impede de tentar desclassificar os livros dos dois outros finalistas da mesma categoria (o de Álvaro Mendes e o meu), nem de recomendar, sucinta, porém irrestritamente ("merece ser lido e relido"), o livro que apadrinha, nem ainda de lamentar não poder "defendê-lo" ainda mais.
Eticamente, ele não podia ter feito nenhuma dessas coisas. É lamentável que o sr. Massi não tenha adotado a única atitude que seria digna nessas circunstâncias, a de recusar-se a comentar qualquer um dos três estreantes.
Contra o meu livro, o sr. Massi faz uma acusação típica de quem honestamente não teria o que criticar. Vale a pena citar essa jóia.
"Paradoxalmente, os bons momentos do livro abrem caminho para a percepção do quanto a sua poética é oscilante e desigual", diz ele.
Primeiro, o epíteto "desigual" é vazio, pois poderia ser aplicado a qualquer obra, até mesmo, por exemplo, a uma coletânea de sonetos de Shakespeare.
Mas suponhamos que meu livro mereça, mais do que a maior parte dos livros, ser chamado de "desigual". Um livro excepcionalmente desigual é um livro que tem uns poemas muito bons e outros muito ruins.
Basta um segundo de reflexão para compreender que um livro de poemas assim seria melhor do que qualquer livro medianamente bom.
Em poesia, o adjetivo "medíocre" é tão pejorativo quanto "ruim" porque, para ela, só valem os vôos altíssimos. Uma águia pode alguma vez voar mais baixo do que uma galinha, mas é claro que os vôos mais altos das galinhas jamais, nem de longe, alcançam a altura dos vôos altos das águias.
Basta um só desses vôos para que um livro de poesia valha mais do que qualquer livro que se mantenha consistentemente à altura do mais alto vôo de que sejam capazes as galinhas.
Coisas semelhantes poderiam ser ditas quanto a ser "oscilante" a minha poética. Também essa qualificação é vazia e enganosa, pois pode ser que, assumindo riscos, ultrapasse a Taprobana das poéticas já pacíficas.
Contudo, embora, a rigor, as "críticas" do sr. Massi não digam nada, elas não deixam de cumprir a única e pérfida função para a qual foram escritas: a de macular o meu livro na cabeça do leitor irrefletido.
Águas turvas
Além disso, tentando pescar em águas turvas, o sr. Massi questiona também o fato de Álvaro Mendes (porque, tendo 57 anos, não seria, segundo ele, suficientemente jovem) e eu (por ser letrista conhecido) concorrermos na categoria dos "estreantes".
Nada mais sórdido pois, como se trata de nossos primeiros livros, as regras não nos permitiriam concorrer na categoria alternativa, a dos "autores consagrados".
Se o tivéssemos feito, seríamos, sem dúvida, acusados por ele mesmo de impostores. O fato é que qualquer pessoa de boa-fé reconhecerá não ser esse o momento para questionar as regras do concurso, mas sim de observá-las estritamente.
Naturalmente, nem o próprio Massi tem a veleidade de ser capaz de mudar as regras a essa altura: basta-lhe desmoralizar os concorrentes de seu "protégé".
Ao "assumir publicamente a defesa" (as palavras são dele) do livro com o qual já se comprometera, o sr. Massi não tem escrúpulos em fazer aquilo que retoricamente condena, isto é, nas suas próprias palavras, submeter "os autores às piores práticas de uma campanha política, expondo-os aos tradicionais lobbies e toda a sorte de corporativismo".
Percebemos melhor quão pertinentes são essas palavras quando nos lembramos que o sr. Massi é professor da USP e Heitor Ferraz, editor-assistente da Edusp. Mas a verdade, felizmente, é que semelhante atitude não é comum entre os finalistas ou amigos dos finalistas do Prêmio Nestlé.
A maior parte de nós não fez campanha alguma. Eu, por exemplo, não pedi sequer a amigos íntimos ou parentes que fossem às livrarias votar em mim.
Tampouco esta carta poderia fazer parte de campanha alguma, pois, quando for publicada, já terá passado o momento decisivo para a premiação, que, terá sido, naturalmente, a semana subsequente à publicação do artigo do sr. Massi.

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