São Paulo, domingo, 11 de maio de 1997
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A quarta globalização

ROBERTO CAMPOS

A globalização econômica não é um evento inédito e assustador. É um processo que ocorre em ondas, com avanços e retrocessos separados por intervalos que podem durar séculos.
A primeira globalização foi a do Império Romano. Enquanto os gregos filosofavam em suas cidades e ilhas, os romanos articulavam um império. Construíam estradas e aquedutos, impunham seu sistema legal, difundiam o uso de sua moeda e protegiam o comércio contra os piratas. Eram mais engenheiros do que filósofos. Com a queda do Império Romano, houve uma feudalização política e comercial.
A segunda globalização ocorreu na era das grandes descobertas dos séculos 14 e 15. Desvendaram-se novos continentes e foi aberto o caminho da Índia e da China. Mas o surto do comércio internacional foi frequentemente interrompido por guerras religiosas e lutas dinásticas das monarquias européias.
A terceira globalização viria no século 19, após as guerras napoleônicas. Foi o século em que o liberalismo sobrepujou o mercantilismo e começou a prosperar a democracia política. Curiosamente, tanto o liberalismo como a democracia tiveram seu "annus mirabilis" no século anterior, em 1776, ano em que foi publicado o tratado de Adam Smith sobre o liberalismo econômico e foi lavrada a Declaração de Filadélfia sobre liberdade política. Durante a terceira globalização, no século 19, assistimos: 1) à liberalização do comércio com a revogação da "Corn Law" na Inglaterra e o tratado de livre comércio entre a França e Inglaterra de 1860; 2) à colonização européia da África e Ásia, gerando novas correntes de comércio; 3) a uma enorme transferência de capitais, sobretudo ingleses, na sequela da expansão imperial; 4) a grandes migrações humanas para a colonização dos novos continentes.
A terceira globalização sofreria abrupta interrupção com a Primeira Guerra Mundial (1914/18). Iniciar-se-ia a era dos coletivismos de direita e esquerda -o comunismo e o nazi-fascismo-, ambos hostis ao livre comércio e favoráveis ao autarcismo. Ao mesmo tempo, a grande depressão dos anos 30 debilitava o capitalismo e provocava uma irrupção de protecionismos.
A quarta globalização viria após a Segunda Guerra Mundial, mas só atingiria seu apogeu com o colapso do socialismo em 1989/91. Entretanto, mesmo durante os 40 anos de Guerra Fria retomou-se a tendência de globalização com o surgimento de organizações internacionais (ONU, BIRD, GATT etc), a formação de complexos regionais como o Mercado Comum Europeu, o enorme surto das empresas multinacionais e a globalização dos mercados financeiros facilitada pela revolução da telemática.
Com o colapso do socialismo, reduziram-se as barreiras comerciais e aumentou o fluxo de investimentos para os países da Cortina de Ferro. A China começara a abrir-se comercialmente já em 1980. É hoje a maior absorvedora de capitais estrangeiros (superada apenas pelos Estados Unidos) e deseja ingressar na Organização Mundial de Comércio. Cada vez mais, a grande clivagem entre o capitalismo e o socialismo parece, vista em retrospecto, uma guerra civil dentro do Ocidente, já que tanto o marxismo como o liberalismo são criações da cultura ocidental. O marxismo chinês (e de outros países asiáticos) tem características culturais próprias, inclusive a de serem de origem predominantemente agrária, antes que industrial. Sob esse ângulo, tem razão o professor Samuel Huntinghton ao dizer que os conflitos futuros não mais serão entre sistemas econômicos, como os da Guerra Fria, e sim entre civilizações.
Por que a quarta globalização está provocando talvez mais apreensão que entusiasmo? Primeiramente, porque o processo globalizante se tornou muito mais rápido com a revolução das comunicações e a difusão da sociedade do conhecimento. Segundo, porque se tornou mais abrangente, envolvendo não só comércio e capitais, mas também telecomunicações, finanças e serviços antes cobertos por várias formas de proteção. Apenas em dois aspectos a globalização atual perde para a era do liberalismo do século passado. Graças à conversibilidade e automatismo do padrão ouro, a integração do mercado de capitais era talvez maior no século passado, enquanto que as migrações em massa asseguravam uma flexibilidade de mão-de-obra superior ao da presente era de restrições imigratórias. A colonização de novas áreas (Estados Unidos, Canadá, Austrália, Argentina e Brasil) abriu amplas oportunidades de ocupação da mão-de-obra européia liberada pelo progresso tecnológico.
Hoje a praga de fim de século é o desemprego, ou em sua forma mais amena, a "precarização" dos empregos. As manifestações são diferenciadas. Na Europa, avoluma-se o desemprego aberto, que é particularmente agudo nos países que têm generosa e rígida regulamentação trabalhista, como a França, a Espanha e, em menor grau, a Alemanha. Esta tem o problema adicional de dar ocupação às massas subempregadas da antiga banda comunista. Nos países do Terceiro Mundo, as manifestações mais óbvias são o agravamento do subemprego e a informalização da economia a fim de aliviar encargos fiscais e trabalhistas. Em todos os países, um problema contundente é o desajuste entre a demanda de trabalhadores supertreinados na tecnologia moderna e a oferta excessiva de mão-de-obra subtreinada.
Os dois países altamente industrializados que conseguiram abrandar o desemprego foram os Estados Unidos, tradicionalmente desinibidos nas relações trabalhistas, e a Inglaterra, onde o thatcherismo desregulamentou substancialmente o mercado de trabalho, recusando a "carta social" da Comunidade Européia. No Japão, onde as empresas se assemelham culturalmente a blocos familiares, apenas agora começa a se manifestar o desemprego aberto de tipo ocidental.
Mas a perda de flexibilidade de adaptação às mudanças tecnológicas, característica do assistencialismo trabalhista, está longe de ser o único ou nem sequer o mais significativo fator. A explicação da "crise de empregos" é complexa. Há causas conjunturais, de vez que a Europa Ocidental e o Japão estão somente agora emergindo da recessão que se iniciou em 1990, e que na Europa teve como um dos detonadores a alta de juros na Alemanha para financiamento das despesas de reunificação.
A concorrência da mão-de-obra barata dos países emergentes é citada por europeus, mas seus efeitos são provavelmente sobreestimados, pois são compensados pela crescente demanda de equipamentos sofisticados para o novo surto de industrialização asiática e latino-americana. A explosão tecnológica é parte da explicação, forçando a reengenharia das empresas. No curto prazo, desloca-se a mão-de-obra tradicional, que se torna inempregável. No médio e longo prazos, com a elevação da produtividade e da renda, geram-se novos empregos. Mas esses não surgem imediatamente, exigindo retreinamento da mão-de-obra, e emergem em lugares diferentes e sob formas diferentes. Declina o emprego industrial e multiplicam-se as ocupações em serviços diferenciados. Os pessimistas chamam isso de "desindustrialização" ou de "precarização" de empregos. Os otimistas falam de "otimização das preferências do consumidor", o qual, relativamente saciado de bens materiais, busca acesso a uma nova gama de serviços de comunicação, saúde, lazer ou informação (a civilização da Internet). O que é simplista demais é pensar que os empregos industriais perdidos eram mais nobres e bem pagos, sendo as atividades de "serviços" secundárias e mal remuneradas. A experiência americana tem revelado que vários serviços, em setores de crescimento explosivo como telecomunicações e serviços financeiros, nada ficam a dever aos empregos industriais tradicionais. Uma coisa é certa. O liberalismo nada tem a ver com a crise do desemprego. O contrário é que é verdadeiro. Os regimes marxistas, visceralmente antiliberais e superpreocupados com a universalização de empregos, acabaram implodindo por inchaço burocrático. E são os países de orientação liberal os que têm revelado maior capacidade de geração de emprego, havendo mesmo dois casos milagrosos -o de Hong Kong e o dos Estados Unidos- nos quais a flexibilidade de despedida é mais do que compensada pela alacridade nas contratações.

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