São Paulo, segunda-feira, 12 de maio de 1997
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O papel da arrogância no naufrágio liberal

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

Eles usam terno de risca de giz. Eles têm a pele bronzeada o ano inteiro. Usam terno de risca de giz, têm a pele bronzeada e se consideram os únicos capazes de dirigir a Inglaterra.
Eles deviam ser enxotados por um tempo, para esquecerem este argumento de que os adversários são incompetentes e vão levar o país para o abismo, caso conquistem o poder.
São apenas algumas afirmações sobre os conservadores, que perderam o poder depois de 18 anos. Muita gente não aguentava mais aquele tom do dono da verdade, que ostentava com a mesma frequência com que usava o bronzeador artificial.
Os relatos dos jornalistas que comeram os salgadinhos e tomaram refrescos do partido, na noite da derrota são cruéis. Um deles afirma que a apuração fez os conservadores atravessarem três etapas diferentes. Na primeira delas, quando os números apenas se esboçavam, alguém aparecia na sala e dizia: fulano vai mal. Fulano era um dos seis ministros que estavam para perder as eleições. Essa fase foi a do hospital. Logo em seguida veio a fase do morgue, quando os cadáveres políticos foram se empilhando nos quadros de apuração.
Finalmente, veio a fase do monumento, quando começaram a dar o balanço de "como foram importantes os seus 18 anos de governo, como ficarão marcados para sempre na história da Inglaterra".
Num livro em que analisa o futuro de uma política radical na Inglaterra, Anthony Giddens afirma que os liberais são parecidos com os revolucionários de esquerda pelo menos em um aspecto. Partilham da idéia de que têm uma solução para os problemas do país, baseiam-se em convicções econômicas bem definidas e estão dispostos a arrastar tudo que se opõem a eles. Sentem-se como os responsáveis pela própria marcha da história e os oponentes, bem esses não passam de retrógrados que precisam ser afastados do caminho.
Essa sensação de ser o detentor do rumo da história dá aos liberais e deu aos revolucionários de esquerda a força que precisavam para seguir adiante, uma sólida racionalização para suportar os gritos dos que eram atropelados pelo irresistível avanço do trator do progresso.
Sentir-se o timoneiro da Inglaterra no fim do século, achar-se à frente do seu tempo, governando e sendo admirado pelo povo, é um grande consolo até para quem perdeu um império. O problema é acreditar nisso tudo e sofrer a maior derrota eleitoral do século 20.
O tamanho da queda poderá levar os conservadores a entender a arrogância ou pelo menos achar uma fórmula para evitá-la. Nenhum país suporta facilmente a idéia de que um grupo, e somente esse grupo de luminares, possa conduzi-lo para o século 21. Todas as chantagens jogando com a hipótese de um caos econômico também fracassaram.
Eles deixaram o governo, usando seu terno de risca de giz, com a pele bronzeada e o caos que profetizaram não apareceu no horizonte, nem se anunciou para um futuro próximo. Simplesmente, o país ficou mais otimista e a própria Londres está swingando de novo, como nos áureos anos 60. O que eles chamam de fator alto astral ("feel good") está presente nas ruas.
Por isso, achei que havia um paralelo entre a queda do Muro de Berlim e a derrota conservadora na Inglaterra. Duas experiências que se achavam insuperáveis desapareceram no espaço de um dia.
O fim da história? Bem, o fim da história não era para agora. Os que pensaram apenas em administrar um presente imutável foram tragados pelo futuro. Major era chamado de Honest John, um homem atento para a tática, mas incapaz de enxergar alguns palmos adiante do nariz. Era como se os conservadores vivessem num fogo permanente e não conseguissem ver a montanha com a qual colidiriam no 1º de Maio.
Com as rápidas apurações modernas, a noite eleitoral é um fenômeno extraordinário: passa-se rápido do hospital ao morgue, do morgue ao monumento, e, quando menos nos damos conta, já estão lá os pombos, fazendo cocô nas nossas arrogantes cabeças de bronze.

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