São Paulo, segunda-feira, 12 de maio de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Daquilo que não se pode mais amar, deve-se passar além!"

JOSÉ CELSO MARTINEZ CORREA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando li o artigo de Jabor, com manchete catastrófica sobre a ameaça de se dar um fim ao que ele chamou de vitória cultural do governo FHC, senti de cara mais um coice no enjeitado: o teatro não-burguês. De cabeça, recebi o barravento da imagem nobre do horário nobre do jornalista da TV Globo: rendas e mais rendas, cachos das perucas de um cortesão, "raisonneur" ensobrancelhado de um personagem sobrado do teatro colonial dos tempos de um marquês, que marquês mesmo? Ah!, o marquês de Sapucaí.
Como se tem pago caro no Brasil pela proibição da orgya teatral! Com que zelo a elite dos pedintes da burguesia reza a tudo o que vem da corte e com que desprezo milita contra a riqueza do corpo-a-corpo do teatro, da cultura que não se submete a imagem d'Ela, Burguesia Cortesã Coroada da República: a corte do corte, desde Canudos.
"O mundo se grudou no neo-liberalismo por causa do audiovisual americano". De acordo. Este nero-liberalismo já destruiu, lá, o teatro e o cinema: veja-se o esforço transumano dos artistas americanos agora, tentando antropofagiar Shakespeare da coroa inglesa no Ricardo III de Al Pacino, quando já existiu o Mercury, Globe Theatre de Orson Welles.
O tal cinema, que é a tropa de choque da cultura Dallas-Miami-Pentágono, é uma porcaria rica: a mesma que tem instaurado a guerra de controle da informação, a guerra pela imagem, pelas falsas aparências, para o vuduzamento, o domínio da medula nervosa de todos os corpos do mundo em permanente insubordinação.
A oligarquia da colônia quer ser mais americana que os americanos e o Marquês sugere a regressão à monocultura brasileira -agora no ciclo da imagem-, "sem bundas de mulatas para apagar a imagem da prostituição infantil e dos massacres semanais".
E, de lua preta, guruza:
"Para ter cara própria, o Estado precisa declarar o cinema uma propriedade"... do Estado.
"Isonomicamente", não desejo para o teatro esse suplício e essa subordinação, e tenho certeza absoluta que nem o cinema brazyleiro quer ser propriedade de ninguém.
O cortesão negocia: diante da ameaça de cumprimento do total massacre ordenado pela diminuição do Estado, que se venda o cinema ao Estado como sua própria imagem e semelhança na nova guerra mundial; e que o teatro -o não-submetido- continue como o enjeitadinho, "fraquinho", "arcaico" (arcaico, acho ótimo), longe das tecnologias do "avião à jato" (acho péssimo).
O "que veio grudado nas imagens dos filmes e da TV americana", impôs o limite do extermínio para o Estado não aumentar -mesmo na área em que nunca chegou a existir: a da cultura. Mas a verdade é que o Estado está aumentando culturalmente sim, como marketing de si mesmo e da classe que tomou conta dele. O conceito de privatização estatiza a imagem da ordem mundial num marketing que impõe e dispõe.
Utilizando os impostos, banca inteiramente a imagem que os bancos, as empresas privadas e as estatais, estrategicamente, desejam manter nesta guerra de informação: a cultura-ideologia-vitrine da classe que está mandando. No teatro é espetacularmente óbvio: os investimentos clássicos dos 600 mil ou até milhões de reais que o Estado investe indiretamente num teatro dedicado à representação de classe.
Qualquer toque físico na moral puritana américo-portuguesa ou no apartheid cultural, que a alta classe média intocável, enfeiada, criou por seu pânico, qualquer investida nos tabus liberais, seja o tabu da ululante luta de classes, ou o do extermínio dos desclassificados, o da família, o das religiões e o da moral sexual edipiana, é punido com um duro boicote econômico.
A cultura de classe hoje é o ópio da Ordem Liberal...
A quebra óbvia do segredinho é que o teatro enjeitado quer as mesmas oportunidades que o cinema, até pouco tempo também excluí do, teve para seu "ressurgimento glorioso". Mas nem o teatro nem o cinema estão interessados em ser a marca do Estado ou da burguesia brasileira na guerra da aldeia global.
O Brasil já teve uma cultura menos fascista: o luxo irreverente e popular do teatro de revista de Walter Pinto, a própria ética teatral da fábrica do TBC, o milionário movimento de teatro total plugado da terra em transe dos parangolés, da luta armada, dos movimentos estudantis e operário na roda viva do tropicalismo dos anos 60.
Tem, 30 anos depois, uma multidão de barrados da realidade, fazendo teatro do impossível, apesar do custo proibitivo dos espaços teatrais, da sua exclusão total dos marketings clássicos da produção, e que assim mesmo está na tremedeira inspirada da criação do teatro brasileiro com as multidões de estádio como engenhou Oswald de Andrade.
Embriões novos, jovens sem vergonha, orgulhosos vêm como desejo de juntar gente desejosa no rito despudorado, descatequisador, chupador da medula neo-colonizada para reprofissionalizar o teatro, comer bem dele, dormir, ensaiar, estudar, andar de sapatões em avião à jato para tirar o Brasil desta.
Com uma nova censura, a corte exige cortes neste teatro que toca subversivamente esta ordem sem oposição. Prega o aviltamento econômico, a desvalorização do teatro como poder. O marquês de Sapucaí paga seu dízimo nessa guerra miserabilizadora.
Temos um inimigo maior que a política cultural do atual governo, dos banqueiros e empresários: sua polícia cultural.
Ou sendo mais claro, a política cultural-econômica da ordem liberal brasileira está fundamentada na polícia cultural. A política é a polícia e a cultura uma tapadeira da concentração de capital.
Teatro é o encontro direto, a democracia da pulsão política do instante, a conspiração corpo-a-corpo do gozo coletivo de poder carnavalesco aglutinante. O Brasil não teria tantos "bíblias", messiânicos etc., se o teatro não fosse uma atividade criminalizada.
A fatalidade dramática da ordem mundial é uma lorota da falta de jeito atual do playwriting do império americano. O Brasil não é dramático nem puritano, é tragicomicorgyasticamente shakespereano. Há outras formas de produzir a vida apaixonadamente; e, neo-bicheiros, vamos construindo uma prática para na hora certa tomar o poder das contas culturais das rendas dos acadêmicos positivistas.
Dá tesão de trabalhar com os bichos selvagens ágeis, belos, velozes que são os meninos de rua, criar óperas de Pequins, Cieps musicais. A foto do homem e da mulher sem-terra se beijando na boca, se despedindo, é bela. Veio de um teatro de sandálias havaianas, caminhando por Demeterra e vai fazer a reforma agrária. O Brasil, país da fábrica mundial anti-edipiana que é Nelson Rodrigues, está pronto a ter no teatro, um rico esporte de trabalho para multidões gregárias. Se há tecnologia para "Sai de Baixo", há para levantar a cabeça insolente de Cacilda.
Jabor vestiu esta personagem por generosidade masoquista. Na solidão do debate cultural concreto pôs esta máscara para revelar uma visão tão medíocre do teatro no Brasil, que incita os que adoram a potência do teatro brasileiro a expor suas ficções científicas e a apoiar a realidade científica de agora: tudo que valorize a produtividade econômica de um teatro para os brasileiros encenarem justamente o Brasil obsceno -a potência temida como o tacape capturado do índio que queria presentear o presidente.
A lei do cinema -como a possível lei das artes cênicas, combatida corporativamente por Jabor- mantém o Estado como total bancador indireto das produções. Mas pelo menos, em troca do lucro para as empresas investidoras, determina alguns mecanismos balizadores da autonomia da mídia cinema e teatro em si. Paradoxalmente democráticos, alguns itens tornam possível um campo de liberdade de expressão e de produção maior não somente com direito mas até com dever social de descobrir imagens e territórios proibidos. A lei da cultura pode ser até a do cão mas não a do capital. A cultura do capital, o marketing, não precisa de lei.
A dança também vai querer sua lei. Um povo que dança o que o Brasil dança não pode sofrer esta miséria tão grande de nijinskis condenados a viver debaixo dos viadutos, enquanto uma dança culturosa, sem corpo e que não faz dançar se apóia em bocejos luxuosamente patrocinados.
Tudo que escrevo é para dar a medida justa do valor poético, político, econômico, social e sobretudo liberador do teatro, na desmedida em que vivo o encontro direto de pessoas vivas com pessoas publicamente se divertindo num rito de antropofagia desvuduzador deste neo-colonialismo.
Catarse, com efeito de cura política, tupy, medicina social, religação do cérebro frontal à memória arcaica, fim da lobotomia e da engolição de sapo.
Um Ministério do Comércio e Indústria ligado nos brazys criaria um Banco da Cultura e das Artes com a capacidade de produção à jato, como é a da vida que o teatro tem que viver.
Sou cacique de teatro e pelo prazer de vida, "distração e cultura" que essa arte tem dado e dará publicamente, eu, milionário de teatro, não posso calar diante da pobreza de visão desta entidade cortesã que desejo ver sumir dos belos e queridos olhos de safira do cineasta e amigo Arnaldo Jabor.
Filma Jabor! Ou então: "daquilo que não se pode mais amar, deve-se passar além!"

Texto Anterior: O papel da arrogância no naufrágio liberal
Próximo Texto: Próximo passo é atrair iniciativa privada
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.