São Paulo, quinta-feira, 15 de maio de 1997
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Vilões

OTAVIO FRIAS FILHO

Kenneth Branagh levou ao Festival de Cannes a sua versão para o cinema de "Hamlet", a peça mais famosa de Shakespeare. São quatro horas de duração, em desafio à máxima de outro cineasta inglês, Alfred Hitchcock, para quem o tempo de qualquer espetáculo deve ser fixado por um critério prosaico, a capacidade da bexiga humana.
Limite desprezado na época do bardo, quando os teatros não tinham banheiros e o desasseio era geral. O espetáculo transcorria em meio à balbúrdia de vendedores ambulantes, prostitutas e bêbados; especula-se que as peças de Shakespeare frequentemente começam com cenas violentas ou sobrenaturais para calar a platéia.
Algo muito diferente, portanto, do Shakespeare oficial, da imagem que dele temos hoje como um autor pesado, difícil e chato. Também produtor, além de ator, ele prodigalizava exageros mórbidos e palhaçadas, às vezes obscenas, para atrair público, o que valeu a condenação da sua obra por ninguém menos que Voltaire.
Seus assuntos sempre tinham relação, embora indireta, com o "noticiário" do dia, e no meio da mais inspirada poesia jamais feita surgem trocadilhos infames e charadas de botequim, parte irrecuperável nas traduções, parte enterrada no esquecimento, como a Carla do Tchan ou o mote "Sou leso?" estarão daqui a quatro séculos.
É essa distância entre o Shakespeare oficial e o real -uma usina imaginativa que continua em funcionamento sob a poeira das eras- que outro filme, este em cartaz, procura cobrir. Para aproximar Shakespeare da sensibilidade atual, para mostrá-lo como se fosse a primeira vez, Al Pacino escolheu um de seus vilões, Ricardo 3º.
Uma das inovações atribuídas a Shakespeare é que seus personagens evoluem na ação, da qual emergem, quando escapam à carnificina restauradora do final, diferentes. Exceto Edmund ("Rei Lear"), que se arrepende ao ver que é amado por duas mulheres, isso não vale, porém, para os demais vilões, fixados em suas caricaturas.
Mas eles seguem um padrão evolutivo que é mantido até hoje, por exemplo, pelos vilões de desenho animado. Primeiro, anunciam as razões de sua maldade: Iago ("Othello") foi preterido na carreira militar e talvez no leito conjugal; Edmund é fruto de uma ligação ilegítima; Ricardo 3º foi vítima de malformação fetal.
Depois descrevem, com requintes de humor, tudo o que pretendem fazer e de fato fazem, a seguir, a fim de inviabilizar a vida do herói, sendo convenientemente punidos no final, quando já não há mais espaço para cadáveres no palco. Ordem e equilíbrio se restabelecem, Shakespeare era tudo menos um contestador.
Que culpa tiveram Edmund e Ricardo ao nascer, por que não foi reconhecido a tempo o inegável mérito de Iago? E Macbeth, vilão mais "moderno", súdito fiel, marido exemplar, que se torna um monstro não por vingança, como os demais, mas por fraqueza? Mesmo na harmonia cósmica de Shakespeare resta esse déficit oculto, irredutível.

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