São Paulo, sexta-feira, 16 de maio de 1997
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Suetônio e as misérias do mercado

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Se a cultura latina tivesse produzido uma Bíblia, "A Vida dos 12 Césares", de Suetônio, constituiria um de seus livros mais importantes e -historicamente falando- talvez o mais importante. O autor não é um Tácito, um Tito Lívio. Como escritor, pertence ao escalão intermediário que forma o grosso de qualquer literatura. Entre a grande era (Virgílio, Horácio, Cícero, Ovídio) e a fase da decadência (Juvenal) cabe um fosso: nele está Suetônio.
Suas 12 biografias formam um dos alicerces da cultura do Ocidente. E, enquanto houver mundo ocidental, Suetônio terá sobrevivência histórica e literária.
Cometeu faltas de talento e de caráter. O talento não foi bastante para perceber que o primeiro César seria sinônimo do mundo latino. Como soldado, César estendera o império por toda a volta do Mediterrâneo, atingira a Bretanha, por um lado, e, por outro, criaria os limites naturais do mundo latino: o Reno e o Ródano.
É verdade que Trajano superou esses limites. Que Marco Aurélio atingiria as margens do Danúbio. Mas o Império Romano, territorial e espiritualmente, ficaria mais ou menos fixado naquilo que César conquistou e manteve.
Suetônio nem sempre compreendeu os conflitos dos homens que retratou. O entusiasmo por Augusto impediu-lhe de ver a realidade: não percebeu que César havia fundado a era que tomaria o nome de Augusto. Que Tibério herdaria um império com os primeiros tremores do colosso em marcha para a ruína.
Não se pode, porém, exigir tanto de um historiador. Suetônio não foi pior que seus antecessores e sucessores. Sobra-lhe um grande saldo: escreveu um livro que sempre será lido. Como Petrônio, ficou como homem de um só livro. Petrônio resiste ao tempo com seu "Satiricon", painel da decadência do mundo cuja grandeza Suetônio historiou.
Contemporâneos, sobrevivem na cultura ocidental não às próprias custas, mas pelo assunto. Petrônio escolheu as frivolidades de um tempo que havia erguido o vício à categoria de uma filosofia nascida de Platão e diluída num conceito corrompido de virtude. Literariamente, Petrônio supera Suetônio, mas a popularidade e a importância de seu livro ficam aquém.
Tirante os autores anônimos dos textos bíblicos, Suetônio foi o único a enfeixar num só relato um período histórico limitado pela ascensão e queda de 12 homens. Plutarco e outros escritores do mundo antigo e moderno escreveram livros parecidos. Mas a Plutarco, por exemplo, falta esse caráter de crônica, do dia-a-dia quase oficial de um grande império num grande período.
Plutarco selecionou personagens, escolheu heróis. Suetônio prendeu-se a um esquema, a uma dinastia. Não poderia eliminar Galba ou Óton -por mais desimportantes que fossem. Teve de colocá-los ao lado de Júlio César, de Augusto e Tito. A unidade do assunto manteve-o numa rigidez que lhe garantiu a sobrevivência histórica.
Acompanhou os 12 Césares passo a passo, seus ancestrais, os augúrios de seus nascimentos e os presságios de suas mortes. As campanhas militares, as deformações morais e sexuais, os elementos que constituem um homem -ou o processo de um homem. Escravizando-se ao assunto, foi fiel a ele.
O declínio de Roma tem sido explicado de vários modos e por vários motivos. Predominam, tal como em Gibbon e Renan, os motivos de ordem pessoal. Se ao menos Júlio César tivesse morrido mais cedo -ou mais tarde! Se Trajano não tivesse ampliado tanto as fronteiras -ou se Adriano não as tivesse diminuído! Se Marco Aurélio não insistisse na escolha de seu filho!
Há também as causas políticas. Roma fracassou por conservar unido o império e o autogoverno. A culpa foi da iniciativa privada ter caído na burocracia. Há também as razões de ordem militar: os movimentos na China impulsionaram os asiáticos do centro para o Ocidente e atiraram hordas fanáticas contra os romanos que guardavam distantes e quase simbólicas fronteiras.
Há razões biológicas, como a malária e a mistura de raças. Razões econômicas que indicam o esgotamento do solo e o fracasso na indústria. Há ainda as razões sociais: o uso imoderado da escravidão, o advento do cristianismo, e, num exagero que alguns historiadores aceitam, foi invocado até o excesso do banho morno.
Mais do que nunca neste caso, a verdade histórica não é simples. A resposta seria a combinação dessas explicações. O mundo sacudia de seus ombros os pés da Águia. O jugo de Roma era intolerável para novos povos e novos núcleos que se formavam na Europa central e no Oriente Próximo. O império não tinha mais força para sustentar o colosso.
Suetônio impressionou-se com a grandeza dos Césares e não teve a intuição de que o mundo começava a mudar. Erro que, de resto, não foi só seu. Até hoje muitos homens não compreenderam que o mundo deve mudar. Basta dizer que, no tempo dele, o mercado era como Júpiter: o deus máximo e ótimo.

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