São Paulo, domingo, 18 de maio de 1997
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Presidente FHC sucumbe à armadilha prevista em livreto pelo senador FHC

JOSIAS DE SOUZA
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Corria o dia 27 de janeiro de 1997. Orleir Cameli, governador do Acre, mal conseguia conter o sorriso.
Orleir estava em Brasília. Seria recebido por Fernando Henrique Cardoso no Alvorada. Iria acompanhado de Amazonino Mendes, governador do Amazonas.
A capital fervilhava. A Câmara votaria no dia seguinte o projeto da reeleição.
O presidente pediu a ajuda de Cameli e Amazonino. Dono de uma base política gasosa, FHC rogou pelos votos da bancada do Norte.
Faça-se um recuo até o ano de 1991. Fernando Henrique, então um mero senador, queria reformar o sistema de governo. Não sonhava com a Presidência.
Junto com o amigo José Serra, ele preparou uma cartilha em que exaltava vantagens do parlamentarismo sobre o presidencialismo.
"O presidente da República, quando se vê em minoria no Congresso, não pensa em negociar às claras com os partidos (...)", anota o texto.
"Geralmente, acha mais fácil apelar para o é-dando-que-se-recebe (...) Consegue eventualmente aprovar os projetos do governo. Mas solapa a disciplina partidária, ajuda a desmoralizar a atividade política e acaba agravando a instabilidade da sua própria base parlamentar. E assim se fecha o círculo vicioso: fisiologismo, instabilidade, mais fisiologismo."
Comprovação viva
Retorne-se a janeiro de 1997. No instante em que recebia Cameli e Amazonino, FHC não era senão a comprovação viva das palavras que escrevera a quatro mãos com Serra. Estava, ele próprio, rodando no "círculo vicioso."
Pessoas como Cameli são sinônimo de barulho. Em condições normais, não pisariam o mármore do Alvorada.
A ficha corrida do governador do Acre não orna com a biografia de Fernando Henrique. Ele está sob investigação por denúncias que vão do uso de quatro CPFs ao envolvimento com tráfico de drogas.
No dia 28 de janeiro, a emenda da reeleição foi aprovada. Cameli pingou cinco votos no cesto do governo. Diz-se que Amazonino pingou outros 16.
Na última semana, a Folha revelou o conteúdo de fitas em que deputados acreanos confessam ter recebido R$ 200 mil em troca de seus votos.
Na terça-feira, ao ler no jornal as transcrições das primeiras gravações, Henrique Hargreaves, chefe da Casa Civil na gestão de Itamar Franco, saltou da cadeira. De sua casa, no Lago Sul de Brasília, discou para Washington (EUA).
Itamar considera-se responsável pela ascensão de FHC à Presidência. No dia seguinte, não esperou pelo telefonema de Hargreaves. Buscou o noticiário da Folha no cristal líquido do computador.
O ex-presidente devorou, via Internet, a transcrição de novas fitas, em que deputados ligam Sérgio Motta à compra de votos, numa operação casada com Amazonino.
Sombra de FHC
Na opinião de Itamar, dividida com amigos no Brasil, o escândalo terminará resvalando no próprio presidente. Motta, raciocinam os partidários do ex-presidente, é uma espécie de sombra de FHC, uma extensão do chefe.
Ao analisar o novo escândalo, um auxiliar de FHC lembrava ontem um alerta de Ernest Hemingway, destinado a preparar estômagos de espectadores novatos de touradas.
O que acontece na arena, avisou o escritor, não é propriamente uma disputa entre touro e toureiro. O touro, na verdade, está ali para perder.
Em uma eventual CPI, Fernando Henrique seria o touro. Por isso o governo trama contra o aprofundamento das apurações.
Entre o início de seu mandato, em janeiro de 1995, e o encontro com Cameli e Amazonino, FHC trilhou o caminho que ele próprio havia esboçado na frase da cartilha de 1991.
Nos primeiros dias de sua gestão, o presidente foi confrontado com um episódio que condenaria sua gestão ao trinômio da cartilha: "Fisiologismo, instabilidade, mais fisiologismo".
O senador paraibano Humberto Lucena teve a candidatura cassada pela Justiça Eleitoral. Usara dinheiro público em sua campanha. Mandara imprimir calendários na gráfica do Senado.
O Congresso providenciou um projeto de anistia para evitar que Lucena perdesse o mandato. E o PMDB exigiu que FHC sancionasse o perdão a Lucena.
O partido chegou mesmo a fazer chantagem aberta.Se o governo não estendesse a mão a Lucena, o Senado rejeitaria a indicação do economista Pérsio Arida para a presidência do Banco Central.
FHC cedeu. E, ao fazê-lo, informou aos parlamentares que permanecia ativo o balcão em que seus antecessores traficaram empregos, favores e verbas com os congressistas.
Chiadeira
O preço do apoio parlamentar variou conforme a importância do projeto. Quando não se consideravam atendidos, deputados e senadores chiavam. Como fez o deputado Confúcio Moura (PMDB-RO), em abril de 96.
Abespinhado com o Planalto, disse: "Até para fazer uma coisa que não é correta, tem de existir ética dos dois lados. É a chamada ética da malandragem".
FHC gosta da expressão inglesa "carrot-and-stick" (vara e cenoura). Usou-a em seu livro "A Construção da Democracia" (Siciliano, 1993), no trecho em que analisa o relacionamento da administração Figueiredo com os sindicatos.
O governo pedia o arrefecimento das greves no ABC. Em troca, oferecia várias "cenouras" -programa de habitação popular, aumentos salariais e negociação direta entre patrões e empregados.
Em sua relação com o Congresso, FHC acostumou os parlamentares a uma ração regular de cenouras.
Mal sentou na cadeira de presidente, incumbiu Clovis Carvalho, chefe do Gabinete Civil, de abrir inscrições para o preenchimento de cerca de 5.000 cargos. Missão transferida mais tarde ao secretário-geral da Presidência Eduardo Jorge.
Na votação dos projetos de reforma constitucional, FHC tentou cobrar reciprocidade. Pediu agilidade ao Congresso, mencionou a voz rouca das ruas. Mas, habituados à dieta da barganha, os parlamentares exigiram mais e mais cenouras.
O inverso também ocorre. Amazonino, por exemplo, cobra caro o suor que derramou pelo projeto da releição. Quer reaver o controle sobre a Suframa.
Ele pede que seja desalojado da direção do órgão Mauro Ricardo Machado Costa, nomeado em maio do ano passado.
"Aqui tem de tudo"
Atribui-se ao deputado mineiro José Bonifácio (1904-1986) a definição clássica do Congresso: "Aqui tem de tudo. Tem ladrão, tem honesto, tem canalha, tem gente séria. Só não tem bobo".
Para azar do governo, descobriram-se duas exceções à regra: falastrões, Ronivon Santiago e João Maia comportaram-se como bobos.
Ambos confessaram suas traficâncias aos quatro ventos. Pior: permitiram que fossem captadas pelo microfone de um gravador.
As fitas agora enrolam o governo, o Congresso, Cameli, Amazonino, uma penca de deputados e o próprio projeto de reeleição em um escândalo de desfecho incerto.

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