São Paulo, domingo, 18 de maio de 1997
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Kassel aposta na "retroperspectiva"

JEHOVANIRA C. DE SOUSA
ESPECIAL PARA A FOLHA, DA ALEMANHA

A 10ª Documenta de Kassel (Alemanha), a ser inaugurada em 21 de junho (até 28/9) como a última deste século e a primeira a levar a assinatura de uma mulher, a curadora francesa Catherine David, do Museu Jeu de Paume, de Paris, já não será mais uma exposição no molde das anteriores. Ela pretende ceder o máximo de seu espaço à reflexão cultural das práticas estéticas contemporâneas.
Com um orçamento de 20 milhões de marcos, 1 milhão a mais que a anterior, ela vai apresentar 120 artistas plásticos convidados, que, juntamente com cem palestrantes, vão promover o questionamento filosófico, político e histórico da arte e da cultura de hoje.
Em entrevista à Folha, Catherine David fala sobre a sua concepção, baseada no mote "Retroperspectiva", neologismo por ela criado que sugere "olhar para trás a partir de hoje". Ligia Clark, Hélio Oiticica e Tunga marcam a contribuição do Brasil.
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Folha - A 10ª Documenta, além de marcar um importante jubileu na sua história, precede a virada do século. Neste sentido, será uma Documenta "espetacular"?
Catherine David - A gente teria de se entender primeiro sobre o que é "espetacular"... É absolutamente humano e compreensível que as pessoas exprimam preocupações legítimas sobre a passagem do século. Em compensação, a gente tem de se questionar sobre a resposta a ser dada a essas preocupações. Não acho que uma resposta estrondosa e espetacular seja adequada às inquietudes legítimas das pessoas. Então, qual tipo de "espetacular"? A Documenta tornou-se uma grande máquina, um espaço "supermidiatizado". Mas uma exposição não existe para responder a todas as necessidades das pessoas... Neste sentido, nós não especulamos sobre o fim do século. Acho legítimas as inquietações, principalmente políticas, e, a meu ver, a melhor resposta para isso é uma reflexão de nível cultural. Desde a sua origem, a Documenta serve para colocar certas questões a cada cinco anos. A 10ª Documenta orienta-se por isso para apresentar um momento de reflexão das práticas estéticas contemporâneas. Ela funcionará em três níveis: informação, projetos de artistas e fórum de discussões. O ponto central de nosso trabalho reside, assim, no inventário e na interpretação da cultura de hoje.
Folha - O mundo de hoje não corresponde mais ao mundo da 1ª Documenta. Não somente no que diz respeito aos conflitos sociais e políticos, mas à presença da arte nas sociedades modernas. Neste sentido, tem-se que inventar novos dispositivos específicos de exposição de arte?
David - É claro que a missão da Documenta de hoje não pode ser a dos anos 50 ou 70... Acho que a Documenta, no melhor, representou a visão liberal e libertada dos modernistas e de um espaço generalista e universalista no fim dos anos 70. Mas, hoje em dia, não se pode trabalhar num espaço pressupostamente generalista e universalista sem se colocar questões. Mesmo que tudo não tenha de ser reinventado, o modelo tradicional de exposição chegou ao seu limite quanto ao objetivo de apresentar (e refletir sobre) a complexidade das culturas contemporâneas. Expor as obras em paredes ou salas pode ser ainda justificável como prática contemporânea, mas uma prática já limitada por outras.
Folha - A globalização do mundo implica também hoje inevitavelmente a globalização da arte?
David - Efetivamente, a globalização é uma forma como o mundo se organiza economicamente, politicamente etc., com muitos setores de resistência e dissonância. Em relação à cultura e às práticas estéticas, globalização não significa uniformização. No sentido restritivo, é claro que certas formas de mercado são privilegiadas por dinheiro e um certo tipo de público. A meu ver, mais interessante, no entanto, é a articulação complexa entre fenômenos de ordem geral e de adaptação e as articulações locais muito fortes. Quer dizer, na grande "sopa global" flutuam práticas que se mantêm específicas e articulações muito complexas. Portanto, não acho que estejamos assistindo a um momento de uniformização. As práticas estéticas continuam não sendo as mesmas em Luanda (Angola), Johannesburgo (África do Sul) ou Paris.
Folha - A arte permanece um setor naturalmente "protegido" da globalização?
David - Não é isso, exatamente. Eu diria que as práticas estéticas constituem, sem dúvida, espaço privilegiado de reflexão, oposição, dissenso. Privilegiados, mas não "protegidos". A meu ver, artistas não devem ser "protegidos". Enquanto o mundo da economia ou da produção autoriza ou legitima somente certas formas de produção, o espaço estético se presta a todas as articulações possíveis.
Folha - As primeiras Documentas tiveram uma função informativa, que visava principalmente o público alemão. Mas a última Documenta, de 1992, teve uma função nova, de abertura à arte de outros países, fora do eixo Europa-Estados Unidos. Ela estendeu a sua documentação também à arte que se faz no dito Terceiro Mundo. A sua Documenta dá continuidade à essa abertura?
David - A missão da Documenta mudou no decorrer de sua história. Era uma grande exposição do mundo ocidental. Porém, o fato de a última Documenta ter convidado alguns artistas não-ocidentais não me parece a única maneira de proceder para mostrar que não se trata mais disso. Convidar artistas que funcionem como álibi na economia da exposição não é forçosamente interessante. O alimento sistemático de toda a produção artística do mundo, na base da representação dominante das artes visuais, também não é forçosamente convincente. É óbvio que a África contemporânea possui uma produção muito particular. Uma produção têxtil e musical que tem uma importância diferente da produção visual.
Nos países da África e da Ásia, a produção contemporânea daquilo que chamamos de artes plásticas não me parece, neste momento, o mais interessante. Então, por que privilegiar justamente isso? As culturas não-ocidentais são, assim, alinhadas às práticas dominantes aqui e, note-se, práticas, em si, dominantes. Isto me parece uma maneira totalmente perversa. Por que culturas de outras práticas teriam de ser encorajadas a adotar as nossas práticas?
Folha - Esse argumento não acabaria favorecendo preconceitos, discriminação? Por esse critério, não teríamos que regredir à Documenta da Europa e dos Estados Unidos?
David - O termo discriminação é muito problemático. Considero isso uma discriminação, digamos, positiva. Não sou favorável ao paternalismo, e eu considero paternalista, por excelência, a maneira de representação dos artistas africanos na maioria das exposições que vejo.
Folha - Os artistas africanos não têm o nível que se exige aqui para se expor?
David - Não é esse o problema. É uma questão de critério, sem dúvida. Mas também do lugar dos artistas africanos na sua própria cultura. Na Europa também existem coisas que não se deve mostrar na Documenta. Não vejo por que fazer uma exposição universalista sem repensar os critérios, os conceitos ou o contexto. Interessa-me "como" as culturas contemporâneas articulam as suas prioridades, mas, evidentemente, não a partir da visão colonial e pós-colonial. Salvo em certas capitais e certos meios. Vemos surgir em toda parte uma classe dirigente que possui meios para produzir certos tipos de objetos. Será que isto é cultura? Eu diria: não inteiramente. Então, será que essa produção deve ser considerada "a mais interessante"? A meu ver, não. Note-se que em certos países, antigas colônias, as lutas de libertação ativaram práticas culturais muito complexas, que a gente não tem vontade de ver subjugadas por outro tipo qualquer de produção dominante do mercado. Num certo momento, a articulação da cultura tradicional pode ser muito importante e funcionar, inclusive, como um espaço de libertação em determinados países.
Folha - A Documenta não seria um espaço adequado para se processar uma abertura cultural?
David - Acho que é, sim, mas não de qualquer jeito. Abertura no sentido de ter um artista de cada país, não é forçosamente o interessante. Dizem mais as condições do convite e aquilo que o convidado tem a dizer. A 10ª Documenta terá seu espaço máximo não na exposição, embora ela seja a estratégia. Não é à toa que a primeira sala que abriremos será a de Hélio Oiticica. Ele representa um registro maior dos anos 60, nossa homenagem. Note-se, uma referência não-européia, mas ocidental.
Aqui ouve-se frequentemente pessoas se referirem ao Brasil como se se tratasse de um país não-ocidental, e é bom que se atente para o fato de que se trata de um grande país de tradição européia, de cultura católica mestiça, que não deve ser confundido com a África. Efetivamente, é um país muito desigual.
Uma cidade como São Paulo abriga as pessoas mais inteligentes e sofisticadas do mundo e, paralelamente a isso, um mundo subdesenvolvido e não educado. Mas, porque somos aqui mal informados ou porque alguns colegas não fizeram bem o seu devido trabalho nesse sentido, pretende-se até "introduzir" num mundo modernista artistas brasileiros que, na verdade, nunca deixaram de fazer parte desse mundo... A 10ª Documenta questiona essa vocação universalista da Europa sobre o saber.
Folha - Na sua opinião, os países menos desenvolvidos não deveriam seguir os modelos contemporâneos de exposição internacional, mas ousar suas próprias soluções?
David - É isso. Sobretudo, eles não deveriam seguir modelos que estão sendo ultrapassados. Estamos questionando aqui nossos espaços culturais, nossas instituições, nossos museus... Já estamos vendo bem os seus limites e é claro que o modelo "bienal" deve ser inteiramente repensado. A Bienal de São Paulo é um exemplo disso.
Será que a sua utilidade corresponde a este momento cultural de uma megalópole como São Paulo? Naturalmente, a Bienal de São Paulo já tem uma história. E uma história que cola também com a história modernista da cidade. Enquanto a Bienal de Dacar (Senegal), por exemplo, é uma organização recente. Será que nessas condições vale a pena desenvolver esse modelo? Acho que na África e outras partes do mundo, as populações deveriam poder guardar suas formas locais de expressão.
Folha - Qual a sua experiência como a primeira mulher a dirigir a Documenta de Kassel?
David - A minha causa não é a causa das mulheres. É claro que existe um atraso na Alemanha, principalmente nesse setor, no que concerne à posição das mulheres. Nos anos 70, havia nos museus e na crítica de arte da Alemanha mulheres muito fortes. É um país de nível intelectual muito alto, e isto diz mais sobre o país e a sociedade do que o fato de eu ser a primeira mulher nesse posto. Não acho que mude algo, se ele é exercido por um homem ou uma mulher.
Folha - O que a sra. pensa da tendência de se requisitar "executivos" para dirigirem museus...
David - Isto é muito grave! Acho melhor que os museus tenham pessoas que pensem intelectualmente. A Documenta tem um gerente que conhece a economia e seus imperativos. Nós refletimos juntos sobre nossas tarefas, mas nossos papéis são diferentes. Ele não tem que me dizer o que eu devo pôr na minha exposição, mas eu tenho de discutir com ele as limitações do orçamento. Porém, o critério não pode ser ganhar o máximo ou perder o mínimo de dinheiro.
Folha - A aceleração do progresso técnico na arte e o confronto do público com noções cada vez mais novas -como as ditas arte energética, arte portátil, arte virtual etc.- são indícios do fim da arte ou de perspectivas futuras?
David - Não se deve entrar nesse tipo de discurso apocalíptico. Acho que a técnica é sempre solidária ao progresso social, a um progresso cultural. A técnica sozinha é dificilmente operável. No que diz respeito à Internet, há muita "espuma", muita agitação. Tem que se promover as novas técnicas, o material à venda, o novo espaço econômico. Não se deve ser ingênuo, mas estar consciente disso não significa que se deixe de reconhecer artistas importantes que se exprimem por esse meio.
A 10ª Documenta vai mostrar artistas que trabalham em meios totalmente diferentes. No espaço Internet, Philip Pocock (Canadá) é um artista muito interessante e que acho que poderá ser compreendido em relação às coordenadas clássicas. Ele trabalha sobre o tema "viagens", reais e virtuais. No sentido amplo, sobre os deslocamentos de temas culturais. Nos últimos anos, nota-se uma espécie de exibicionismo das mídias. Mas, acumular, por exemplo, 50 vídeos numa parede, não me parece nada fascinante. Acho que a técnica tem de ser usada com muita sensibilidade e inteligência.
Folha - A Documenta na Internet não significa o fim da Documenta de Kassel como um local de arte?
David - Evidentemente a Internet bem gerada é um espaço autônomo de extrema difusão, é um meio muito acessível, mas ainda não existem computadores em toda parte. Em certos países, contam-se no máximo 2.000 usuários. Então, temos de refletir sobre a pseudodemocracia desse meio...
Folha - Mas muitas pessoas não precisariam vir mais a Kassel, deslocar-se de cada para ver a Documenta. Isto não é concorrência?
David -Kassel ou não, um dia a gente terá de questionar a necessidade de uma confrontação. Vivemos um momento cultural no qual desenvolvemos novos hábitos, outras relações de percepção, outras maneiras de tomar conhecimento. Quer se queira, quer não, vai-se ter de considerar que sai mais barato transportar 50 pessoas do que um quadro de Rafael. Naturalmente vamos sempre poder fazer exposições como sempre fizemos. O que não podemos mais, é imaginar que esse é o único espaço possível. Muitas produções estéticas contemporâneas já se realizam e se difundem em monitores em espaços privados, destinadas a um público que não se desloca de casa.
Folha - Lembra o efeito da televisão no cinema...
David - É uma associação ousada, mas é um pouco isso. O problema de hoje é continuar a fazer filmes verdadeiros. E isto é uma decisão de ordem cultural e política. A necessidade de se fazer algo não deve ser ditada somente pela economia. Hoje, a necessidade de uma exposição está na confrontação do tipo de obra que se pretende apresentar. E, efetivamente, um dia vai-se ter de "proteger" as exposições como um meio específico de um tipo de confrontação com as obras. Claro que hoje não se faz a peregrinação a Kassel nas mesmas condições de 1955, pois existem exposições em todo lugar, nas grandes lojas, nos telões dos aviões etc. E talvez já se deva refletir sobre a especificidade de um espaço físico e cultural como Kassel...
Folha - "Retroperspectiva" é o mote de sua Documenta. Tem-se que olhar pra trás pra se poder olhar pra frente? É um moto pedagógico dirigido ao público ou aos jovens artistas?
David - "Retroperspectiva" não é o único tema da Documenta. É um instrumento de trabalho para tornar mais perceptíveis algumas práticas. É importante para que as pessoas deixem de perceber a Documenta como um "ditador de novidades". Nos últimos 15 anos, houve uma tendência a alimentar a produção estética com outras formas de produção -um fato cultural criticável! O critério de novidade não significa forçosamente um critério de qualidade. Acho importante mostrar idéias e objetos de produção de momentos diferentes. É muito importante para os novos artistas e também para um certo público tomarem conhecimento da história recente e ver que as práticas estéticas que têm uma dinâmica próxima podem ser articuladas de modo diferente, independentemente do ano.
A 10ª Documenta não apresenta uma retrospectiva absoluta, pois não é um museu tradicional. O termo "retroperspectiva" quer dizer "olhar pra trás, a partir de hoje". Existem certas práticas que são mais ligadas às práticas históricas. Certos artistas contemporâneos parecem utilizar hoje mais a obra de Marcel Broodthaers (artista belga) que a de outros. Então, ele é um artista "majeur", para muitos artistas, na sua maneira de ver, de pensar. Mas quem é Broodthaers?!... Uma pessoa impregnada da cultura da palavra, e isto pode ser uma referência estética eminentemente política.
Folha - Quais suas impressões do Brasil, quando de sua visita à Bienal de São Paulo?
David - Não é a Bienal de São Paulo que domina minhas impressões do Brasil, mas o Brasil. Já estive lá umas dez vezes... Sob o ponto de vista de uma bienal, a Bienal de São Paulo me pareceu muito bem organizada, mas acho que talvez ela já não seja a forma mais adequada às necessidades e originalidades de uma cidade como São Paulo, uma megalópole com diferentes tipos de população, níveis diferentes de modernidade e consumo e, portanto, diferentes expectativas culturais, que a Bienal parece não refletir. É compreensível a sua vocação pedagógica pela falta de museus etc., e que se deve respeitar e, em certos aspectos, acho que ela é tão boa ou melhor que a de Veneza. Mas, como já disse, ela sofre do disfuncionamento inerente às instituições do tipo bienal e um disfuncionamento específico, que diz respeito à cidade.
Folha - Quais as atrações da 10ª Documenta e qual a contribuição de artistas brasileiros?
David - A contribuição do Brasil é muito forte. Apresentamos uma retrospectiva de dois artistas plásticos modernos já falecidos: Ligia Clark e Hélio Oiticica e um projeto muito importante de Tunga. Quanto às grandes atrações, não devemos criar expectativa nesse sentido. A 10ª Documenta apresenta pólos de interesse que nunca foram suscitados, como um olhar sobre a cidade de Kassel, a utilização de espaços recriados de sua arquitetura, como a velha estação ferroviária, os cem dias de manifestação cultural com cem hóspedes convidados... Da inauguração ao encerramento, a 10ª Documenta funcionará como um verdadeiro museu de cem dias, onde as coisas não só acontecem, mas são discutidas ou, talvez, mudem.

Jehovanira Chrysóstomo de Sousa é jornalista.

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