São Paulo, domingo, 18 de maio de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Uma sinfonia da dissolução

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Estatisticamente esperado, estrategicamente imprevisível, a cada dois ou três meses, com sorte menos, o nome dele está lá: não só nas vitrines das livrarias, anúncios em jornal e catálogos das editoras de seus mais de 40 livros, mas, mais próximo de nós, modestamente na fila, entre outros tantos nomes conhecidos e desconhecidos no sumário da "New York Review of Books" e da revista "New Yorker".
Seu apetite pelo mundo é largo o bastante para acomodar livros, quadros e filmes, além das paixões e desilusões do romance familiar, que ele talvez descreva melhor do que ninguém. Colecionados com um certo fervor, mas certa dose de acaso também, posso listar, parcialmente, para os últimos três anos, 22 resenhas de sua autoria, sobre assuntos variados -Scott Fitzgerald, Nabokov, Gene Kelly, um livro sobre moda, outro de sociobiologia, contos de Calvino, um best seller de Thomas Mallon, romances de Vargas Llosa e Patrick Chamoiseau, uma biografia da rainha da Inglaterra, uma história cultural do Titanic e uma biografia do humanista Robert Benchley -aos quais se somam quatro contos e dois poemas, um comentário ao catálogo de capistas da editora Knopf (sua casa há 35 anos) e mais cinco crônicas (duas publicadas na Folha), sem falar na coletânea "Uma Outra Vida", no romance "Brazil", num livro de contos e ensaios sobre golfe ("Golf Dreams") e na reedição, com o efeito simbólico de uma canonização em vida, dos quatro romances do "Coelho" num volume só da Everyman's Library ("Rabbit Angstrom").
O grande pintor da vida moderna também é um cronista de telas e retratos, como atestam oito ensaios, sobre Degas, românticos dinamarqueses, o fotógrafo Nadar ("Imagens", v. 6) e americanos, como Hopper, Copley, Eakins e o mestre oitocentista de lagos e tormentas, Martin Johnson Heade. A tudo isso vem se acrescentar, agora, em português, um romance enciclopédico, quase um tratado, em quatro partes, sobre a cultura americana neste século, com o título sonoro de um hino protestante: "Na Beleza dos Lírios".
"'Na beleza dos lírios, Cristo nasceu além-mar' -este verso estranho e enaltecedor, extraído de entre tantos outros versos estranhos do 'Hino da Batalha da República', me parecia, naquele início de carreira, resumir o que eu tinha para dizer sobre a América do Norte, oferecendo-se como o título de algum 'magnum opus' continental, do qual todos os meus livros seriam simples fascículos, meras tentativas de cantar em hino este grande retângulo aproximado de país, separado de Cristo pela vastidão do mar." Assim escreve Updike, na sua autobiografia "Consciência à Flor da Pele", profetizando o romance de 1996.
Há um trocadilho involuntário na letra do hino em inglês (conhecido universalmente pelo refrão "Glory, glory, hallelujah"): "Christ was born across the sea" também pode soar como "borne"; isto é, um Cristo não só nascido, mas trazido de além-mar. Dessa ambiguidade, uma distância que se preserva no mesmo movimento de aproximação, o romance de Updike extrai consequências, ou causas, de 80 anos de história americana, narrada como saga familiar, uma espécie de "Cem Anos de Solidão" traduzido no irrealismo concreto desse país "maluco, esbanjador, que vive se autodestruindo", como diz o tio Danny, agente da CIA no Vietnã.
Não é a primeira aventura de Updike pela ficção da teologia protestante; "Roger's Version" (1986) e "S." (1989) já se lançavam ambiciosamente pela paisagem espiritual e carnal da religião americana. Mas nada naqueles livros dava a imaginar uma figura como o reverendo Jesse Smith, o novo Cristo autoproclamado, líder do Templo da Fé Verdadeira, fadado ao desfecho apocalíptico e decididamente autodestrutivo que encerra o livro e um ciclo de quatro gerações. "Família é um negócio misterioso", pensa consigo o velho avô Teddy, filho de um pastor que perdeu a fé e pai da grande estrela de cinema Alma DeMott, a mãe, por sua vez, da ovelha desgarrada Clark/Esaú, que acaba seguindo o reverendo Jesse em sua empreitada salvacionista no interior do estado do Colorado. Negócios e mistérios dão recheio concreto e alegórico a esse livro gigante, nem sempre de digestão prazerosa, mas repleto de passagens extraordinárias; único rival, talvez, das fantasias de Philip Roth como testemunho milenarista da América.
"Na Beleza dos Lírios" é uma sinfonia da dissolução religiosa e cultural americana, começando em 1910, com um "Andante" tortuoso, a história da perda da crença do reverendo presbiteriano Clarence Wilmot. O reverendo vira vendedor fracassado de enciclopédias, gastando as tardes em salas de cinema até morrer, um ano depois, de tuberculose e desilusão. Religião e cinema -ou melhor, a substituição gradual da religião pela adoração de imagens, na tela e na TV- já se anunciam no primeiro gesto contrapontístico do livro, uma sobreposição das filmagens de "Às Armas", de Griffith (a estrela Mary Pickford caindo desmaiada do cavalo), com o momento preciso em que o reverendo Wilmot sente "as últimas partículas de fé" lhe abandonarem.
A transição para o cinema, que rende muitas páginas antológicas sobre essa arte americana, vai se completar com a carreira hollywoodiana de "Alma DeMott", neta de Wilmot e cujo nome soa mais obviamente simbólico em português do que inglês -e tanto mais carregado de responsabilidade, nesse romance em que o cinema constantemente abre caminho para a narrativa da história. Contemporânea de Doris Day, com alguma coisa do charme antigo de Rita Hayworth, Alma deve mais, com certeza, à "poliândrica" (sete casamentos), "all-american girl" Lana Turner -objeto de um comovente ensaio de Updike ("New Yorker", 12/2/96).
O "Scherzo" vibrante de Alma -álter ego irônico do autor, com sua gagueira ocasional- é precedido de um grande "Adágio" liricamente moroso, mais do que amoroso. Narra