São Paulo, domingo, 18 de maio de 1997
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No submundo do Nordeste

JOÃO BATISTA MELO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O mais recente livro de Herberto Sales, "A Prostituta", faz uma homenagem a um clássico relegado ao esquecimento: "Os Corumbas", de Armando Fontes. Uma das obras-primas do realismo brasileiro, o romance de Fontes traça um painel tocante da relação entre prostituição e pobreza e a exploração das classes mais pobres. O romance conta a história de uma família, os Corumbas, cujas mulheres são praticamente compelidas pela sociedade a adotar o meretrício como forma de sobrevivência.
Maria Corumba, a protagonista de "A Prostituta", é uma descendente dos Corumbas criados por Armando Fontes. Ela é uma operária pernambucana que se envolve com um aproveitador e acaba grávida. A partir daí, o preconceito e as restrições culturais a conduzem de forma inexorável à prostituição, numa espécie de fatalismo que é assumido explicitamente pela própria personagem.
Ao narrar a trajetória de Maria Corumba, Herberto Sales retrata o cotidiano do submundo no Nordeste, especialmente em Salvador, em meados deste século, uma época em que não eram tão radicais e perigosas as fronteiras entre ricos e pobres. Com isso, o autor confirma um de seus maiores dons, o de recriar com verossimilhança a ambientação de um determinado universo e o de dar relevo aos personagens que transitam nesse microcosmo. Ele já fizera isso soberbamente em "Cascalho", sua obra de maior dimensão, publicada na década de 40 sob os aplausos de Marques Rebelo, Graciliano Ramos e Mário de Andrade. Naquele trabalho, Sales seguira um caminho similar ao de Fontes em "Os Corumbas", privilegiando uma narrativa fortemente realista, com um mínimo de presença visível do autor.
Por outro lado, em "A Prostituta", ele seguiu menos à risca sua obsessão pelo realismo. Na verdade, talvez tenha até exagerado um pouco no caminho inverso, deixando o escritor transparecer no texto mais do que o desejável. Aqui e ali, Sales não resistiu a emitir opiniões, de certa forma quase morais, acerca dos atos dos personagens.
Quem teve contato com suas obras como "Cascalho" ou "Além dos Marimbus", no qual ele aborda o mundo dos madereiros, vai estranhar no novo livro a preponderância do romantismo quase folhetinesco sobre o realismo de cunho social. Mas essas falhas -se é que são mesmo falhas- não chegam a arranhar a competência com que o escritor conduz o texto e narrativa.
"A Prostituta" traz, contudo, uma notícia ruim. Segundo afirma o próprio Sales, tanto numa das dedicatórias quanto na orelha que ele mesmo escreveu, este será o seu último romance publicado. É uma informação que não surpreende se considerarmos que ele ronda os 80 anos de idade, mas que frustra por não ser "A Prostituta" um livro que feche com chave de ouro a carreira de um dos autores referenciais da literatura brasileira. Ainda que, ao legar à bibliografia nacional uma obra do quilate de "Cascalho", ele não precisasse, teoricamente, ter escrito mais nada. O seu papel já estava cumprido.

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