São Paulo, domingo, 18 de maio de 1997
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O socialismo liberal de Rosselli

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

Carlo Rosselli foi um socialista democrático que, no início do século, lutou contra o fascismo, foi preso, escreveu no cárcere, entre 1928-29, um livro clássico sobre o socialismo e a democracia -"Socialismo Liberal"-, exilou-se na França, para, afinal, ser assassinado, em 1937, por agentes fascistas. Rosselli foi um social-democrata que via o socialismo como um ideal a ser alcançado através de luta política permanente, mas que não o identificava com a coletivização dos bens de produção, nem aceitava a violência como um meio válido para atingir aquele ideal. Em termos concretos, o partido socialista mais próximo de sua visão de mundo era o Partido Trabalhista britânico.
Identificado, entretanto, Rosselli nestes termos simples, uma questão imediatamente se coloca: por que socialismo liberal ou social-liberalismo em vez de socialismo democrático ou social-democracia? O que distingue Rosselli dos revisionistas como Bernstein, Sorel e Mondolfo, que, antes dele, adotaram uma posição reformista em vez de revolucionária, conservando-se socialistas e marxistas? E mais: qual a relevância desse ativista italiano para o Brasil, hoje, depois do colapso do comunismo e da crise do marxismo?
A resposta mais geral a estas perguntas é ter sido Carlo Rosselli quem primeiro e mais coerentemente afirmou a consistência entre dois termos, que foram sempre considerados contraditórios -liberalismo e socialismo-, e que, segundo ele, se complementariam lógica e historicamente. Norberto Bobbio, a quem provavelmente se deve mais do que a ninguém a permanência de Rosselli no debate contemporâneo, sempre manteve o caráter contraditório das duas ideologias, afirmando que no máximo o que poderia haver entre ambas seria um compromisso. Rosselli, entretanto, é taxativo. Não se trata de compromisso. Segundo ele, "o socialismo é o desdobramento lógico do princípio da liberdade... o socialismo -movimento de liberação concreta do proletariado- é o liberalismo em ação, a liberdade que se apresenta aos pobres" (pág. 128).
Colocada a questão nestes termos, ou estamos diante de um equívoco monumental ou de uma descoberta importante, que ainda hoje tem enorme importância para o socialismo democrático, que identifico com a social-democracia. Os partidos socialistas democráticos romperam neste século como o marxismo burocrático (que sempre se pretendeu "ortodoxo"), romperam portanto com as idéias de ditadura do proletariado e estatização dos meios de produção, adotando uma perspectiva nitidamente democrática, mas sempre se conservaram "antiliberais", na medida em que o liberalismo era entendido como uma ideologia burguesa de não-intervenção do Estado no plano social e econômico. Rosselli nega frontalmente o caráter burguês do liberalismo. Admite que, historicamente, o liberalismo tem uma origem burguesa, mas tem, ao mesmo tempo, uma origem revolucionária, na medida em que surge, no século 16, com "o nascimento do pensamento crítico moderno" (pág. 128), sendo o seu princípio fundamental o da liberdade.
Na verdade, segundo Rosselli, o liberalismo escapou do controle da burguesia. Existe uma burguesia empresarial, produtiva, criativa, para a qual o liberalismo ainda faz sentido. Mas uma parte considerável dela transformou-se "(n)aquela classe (mais ainda: categoria social e categoria mental) que aufere a maior parte de suas rendas de capitais e privilégios acumulados... (essa) burguesia não pode ser mais liberal" (pág. 132). O proletariado é quem é o verdadeiro herdeiro do liberalismo e da democracia. Através do "método liberal e democrático" o ideal socialista será pouco a pouco alcançado.
Para compreendermos esta posição é preciso definir o que Rosselli entende por socialismo e por liberalismo. E, antes disto, qual sua crítica ao "marxismo", que, para ele, é, na verdade, o oposto do liberalismo.
Os cinco primeiros capítulos de "Socialismo Liberal" são dedicados à crítica do marxismo, ou do marxismo socialista, e dos revisionistas que o criticaram, mas não foram capazes de romper explicitamente com ele, como o faz Rosselli. O autor não tem qualquer dúvida quanto à importância intelectual de Marx. Segundo ele, "não se concebe um homem moderno, com um sentido vivo dos problemas do seu tempo, que não seja, dentro de certos limites, marxista" (pág. 111). Certas descobertas de Marx, relacionadas com o materialismo histórico e a luta de classes, transformaram-se em patrimônio comum da humanidade. "Para os socialistas o problema não consiste em renegar Marx, mas em emancipar-se dele" (pág. 113).
Por que emancipar-se de Marx? Porque Rosselli define o "marxismo puro" ou o "marxismo socialista" como um sistema fechado e autoritário, dentro do qual o socialismo não é o resultado da vontade dos homens e de sua capacidade de luta, mas é uma necessidade histórica. O marxismo, para ele, é estritamente determinista: "O sistema marxista é determinista, ou não é marxista" (pág. 43). Na juventude Marx pode ter sido um humanista. Em certos trechos de sua obra madura é possível encontrar afirmações não-deterministas, mas estas são contraditórias. "No sistema marxista encontramos uma humanidade "sui generis", composta por homens por definição não-livres... O marxismo socialista ignora a liberdade, atribuindo-lhe um valor inteiramente relativo e histórico, confundindo sua essência eterna e imutável com manifestações transientes" (págs. 45 e 153).
Como era de se esperar, a prática desse tipo de socialismo pervertido será desastrosa. Levou a um regime autoritário, burocrático e incompetente. Crítico de primeira hora da experiência comunista, Rosselli afirma em um texto de 1924, em que antecipou as idéias desse livro: "As recentes experiências, todas as experiências destes últimos 30 anos, condenaram sem esperanças os programas socialistas originais. Espécie de socialismo coletivista, concentrador, o socialismo de Estado saiu daí desfeito. Acreditava-se que depois da expropriação improvisada ocorrida em seguida à conquista revolucionária do poder político, transferidas todas as atividades para o Estado, que seria transformado no gerente universal ('o governo das coisas e não mais das pessoas'), tudo caminharia para o melhor... Hoje ninguém mais, em consciência, crê em tais fabulazinhas... todos vêem os perigos enormes da burocracia". (...)
Na medida em que o socialismo não é fruto da necessidade histórico, mas resultado da vontade democrática do movimento socialista, da luta da classe trabalhadora, o socialismo não é um sistema econômico e social, mas um ideal. Não um ideal utópico, abstrato, mas um ideal in fieri, que resulta da luta incansável por um mundo mais livre e mais justo. "O socialismo não é um ideal estático e abstrato, que algum dia poderá ser realizado completamente. É um ideal-limite, inatingível, que se realiza na medida em que consegue permear nossa vida".
A questão, portanto, é saber como chegar ao socialismo. E é aí que, para Rosselli, entra o liberalismo. O liberalismo não é um sistema fechado como o marxismo, é um "método", uma forma de ver as coisas e sobre elas agir que se identifica com a democracia, tanto assim que Rosselli fala no "método liberal ou democrático" (pág. 137). Na verdade, não-liberalismo e democracia são para ele praticamente sinônimos. Os democratas modernos sabem bem que a democracia é antes de mais nada processual, é uma forma de governo constituída por normas ou leis que garantem aos cidadãos a liberdade de pensamento, de palavra e de propriedade, e o direito de votar e ser votado, de participar ativamente do governo. É, portanto, um método de governo, que não nos diz o que o governo fará, apenas como será esse governo constituído e como tomará decisões.
Ora, para Rosselli, o método liberal "sob o aspecto político poderia ser definido como um conjunto de regras que todas as partes interessadas se empenham em respeitar; regras destinadas a garantir a convivência pacífica dos cidadãos, das classes, dos Estados; a conter as disputas fatais e, portanto, indesejáveis dentro de limites toleráveis; a permitir a sucessão no poder dos vários partidos, canalizando na legalidade as forças inovadores, à medida que forem surgindo" (pág. 138). O seu método liberal, como a democracia enquanto método, não tolera atributos. Pode-se falar em liberalismo burguês ou em liberalismo socialista, mas o método liberal "não é nem pode ser burguês ou socialista, conservador ou revolucionário" (pág. 138).
A identidade entre liberalismo e democracia é, assim, plena para Rosselli. Mas, ainda assim, seu socialismo merece o nome "liberal" em vez de simplesmente "democrático". Em primeiro lugar, porque ele tem clara noção da importância do individualismo, que é central para o liberalismo. Um individualismo que não é estritamente utilitarista, como o é o individualismo conservador, já que apenas a mola do interesse não levará ao socialismo, mas um individualismo segundo o qual "os problemas da justiça social e da vida coletiva podem e devem ser colocados no mesmo plano da liberdade e da vida individual" (pág. 126).
Em segundo lugar, porque Rosselli, embora jamais fale em mercado e em concorrência, que são dois temas centrais de qualquer liberalismo, fala que o método liberal está fundamentado "na idéia do desenvolvimento mediante contrastes que se superam continuamente" (pág. 126). Ora, esses contrastes se consubstanciam no plano político, na luta entre as classes e grupos sociais, e nos conflitos nacionais, e, no plano econômico, na competição entre os agentes econômicos no mercado.
A liberdade econômica, além da política, é, portanto, fundamental para o liberalismo. Em seu artigo de 1924, Rosselli não deixa dúvida a respeito: "Para eles (os socialistas) a pura liberdade política e espiritual não tem sentido algum, quando não for acompanhada de uma relativa autonomia e liberdade econômica individual".
Em terceiro lugar, Rosselli é liberal porque seu conceito de liberdade é radical, aberto, e, ao mesmo tempo, histórico. Não lhe interessa uma liberdade abstrata, a-histórica, que certo tipo de liberalismo conservador adota, mas uma liberdade situada no tempo: "O espírito liberal é essencialmente dialético e historicista; para ele a luta é a própria essência da vida... Para o liberal, nenhum princípio, nenhum programa, por mais mítico e antigo, pode assumir o sabor absoluto, categórico, que tem entre os socialistas (marxistas) seu programa finalístico" (pág. 134).
A partir do método liberal, Rosselli chega à definição de liberalismo: "O liberalismo pode ser definido como a teoria política que, partindo do pressuposto da liberdade do espírito humano, vê na liberdade o fim supremo, o supremo meio, a regra máxima da convivência humana" (pág. 127). A partir dessa definição abstrata, Rosselli busca na história a realização de desse ideal, que nasce com o início dos tempos modernos e triunfará, por fim, em 1789, com a Declaração dos Direitos do Homem. A partir desse momento, a liberdade torna-se o valor central da vida social, inclusive e particularmente na esfera econômica. Esta liberdade econômica pode inicialmente responder aos interesses de poucos, mas, com o socialismo liberal, se tornará "efetivamente patrimônio de todos" (pág. 128).
A relevância de Rosselli
Resta saber como chegar ao socialismo liberal. Rosselli não tem dúvida quanto à resposta: através do método liberal. Que é aberto, que não garante o socialismo, que só levará ao socialismo se a classe trabalhadora realmente o desejar. Não há nenhuma necessidade histórica para o socialismo, não é possível falar na demonstração racional, científica, do socialismo, como pretendeu o marxismo. Há, sim, um imperativo moral, um ideal de liberdade e justiça, que só se realizará através da luta incessante da humanidade: "O regime socialista se realizará mas poderá não realizar-se. Realizar-se-á se nós quisermos, se as massas quiserem, mediante um esforço criador consciente" (pág. 147).
Rosselli era otimista a respeito das perspectivas do socialismo liberal. O movimento operário, em todo o mundo, desde o início do século 20, recusou a via revolucionária, da violência, da ditadura do proletariado. Preferiu as conquistas sociais graduais. No seu tempo, não estava totalmente claro ainda que o marxismo ortodoxo desvincular-se-ia crescentemente da classe trabalhadora e acabaria refém da burocracia, que implantaria na União Soviética e nos demais países comunistas um modo de produção estatal ou burocrático. Mas já estava claro que as massas rejeitavam essa solução pretendidamente revolucionária. E o socialismo só poderia originar-se nas massas.
Mas quando? A curto prazo? Não. Rosselli tem o socialismo como um ideal democrático, mas repudia a perspectiva utópica. Ele parte do movimento operário, que se tornou reformista porque "o proletariado sente com crescente clareza que não é mais verdade que tenha tudo a ganhar e nada a perder com uma catástrofe social" (pág. 57). Mais do que isto, os trabalhadores repelem o pensamento messiânico, que é essencialmente iliberal, e reconhece, praticamente, as limitações que sofre. O proletariado está "em situação de inferioridade moral e material" (pág. 134) e, nestas condições, não tem condições de assumir o poder. Rosselli poderia ter acrescentado que os burocratas tinham as condições mínimas que faltavam aos trabalhadores e, por isso, sentiram-se qualificados para assumir o poder.
Como, porém, lhes faltava legitimidade para tal, usaram o socialismo como bandeira e pretenderam ser a vanguarda da classe operária. Rosselli não diz isto, mas enfatiza que o socialismo democrático, liberal, só será possível com o desenvolvimento das forças produtivas. Em outras palavras, quando, através do desenvolvimento econômico e do aumento generalizado do nível de educação, os trabalhadores tiverem condições efetivas de participação na direção da das empresas e do Estado, na condução da vida das econômica e social.
Qual a relevância da visão de Rosselli para o capitalismo do final de século? E, mais particularmente, de que forma podem suas idéias servir de inspiração para os social-democratas reunidos no Partido da Social-Democracia Brasileira, cuja fundação cultural publica este livro?
Rosselli escrevia seu livro em pleno fascismo. Depois da primeira crise do marxismo, no início do século, que levara ao revisionismo e à social-democracia. O marxismo oficial enfrentaria uma segunda crise a partir dos anos 50, quando a repressão na Hungria e depois na Tcheco-Eslováquia torna definitivo o caráter totalitário e burocrático da União Soviética. Esta crise, entretanto, não evitaria o florescimento de um marxismo nacionalista e desenvolvimentista, mas democrático, na América Latina, do anos 60 e 70, quando a esquerda estava em plena luta contra os regimes militares locais, que, aliados ao capitalismo local e multinacional, haviam embarcado também em uma estratégia desenvolvimentista. No momento, entretanto, que os regimes militares entram e crise, paradoxalmente também entra em crise a esquerda marxista, desenvolvimentista e nacionalista, na medida em que o Estado entra em crise. Uma crise da esquerda que se aprofunda com o colapso do comunismo em 1989.
Rosselli escrevia no momento em que a crise de 1929 e a grande depressão dos anos 30 levaria o liberalismo e a direita, com a qual estava identificado, a uma crise profunda. Esta crise só terminaria quando, a partir dos anos 70, se desencadeia a crise do Estado por fatores endógenos, relacionados com seu excessivo crescimento e sua crescente captura por grupos de interesse, e por um fator exógeno: a globalização da economia capitalista. Esta crise do Estado será uma crise fiscal do Estado; será uma crise das formas de intervenção do Estado no econômico e no social -o Estado do Bem-Estar, o Estado Desenvolvimentista e o Estado Comunista; será uma crise da forma burocrática de administrar o Estado. Será não apenas uma crise do marxismo ortodoxo e do comunismo, mas, em menor grau, também uma crise da social-democracia, que se identificou com o Estado do Bem-Estar. Diante da crise do Estado e das várias formas de intervenção estatal na economia, o liberalismo ressurge, a partir da pregação de intelectuais e políticos conservadores ultraliberais ou neoliberais (sinônimos).
Rosselli escrevia em meio à crise do liberalismo para resgatá-lo para a esquerda, para o socialismo democrático. Não havia, afinal, razão, a não ser de ordem histórica, para opor liberalismo e socialismo. Historicamente havia, na medida em que o socialismo marxista se opôs ao liberalismo burguês e propôs não apenas a revolução armada, mas a estatização dos meios de produção. Nada podia ser mais antiliberal. Entretanto, no momento em que vemos, seguindo Marshall, os direitos civis sendo definidos pelos liberais no século 18, os direitos políticos pelos democratas, no século 19, e os direitos sociais pelos socialistas, no século 20, torna-se claro que não há oposição, mas complementaridade entre liberalismo, democracia e socialismo. Liberdade, participação política e igualdade podem, em certos momentos, entrar em contradição, exigirem compromissos, "trade offs", mas a lógica que une essas idéias é antes complementar que conflitante.
Rosselli foi um pioneiro, pensou antes do seu tempo. No final do século 20, não há dúvida de que o programa da esquerda social-democrática rumo ao socialismo tem que ser liberal e democrático. Liberal e democrático tanto do ponto de vista político quanto econômico. Já está claro que o estatismo, a tentativa de coordenar a economia pelo Estado, é ineficiente. Só faz sentido nos estágios iniciais da industrialização, quando a acumulação primitiva se impõe.
Em contrapartida, a tentativa de excluir o Estado do social e do econômico, como propõem os neoliberais, é dogmática e irrealista -tão dogmática e irrealista quanto era a proposta do marxismo burocrático de eliminar o mercado da coordenação da economia. Está claro também que o socialismo é um ideal que só será alcançado quando a generalização da educação tornar não apenas os homens mais iguais em termos de capacidade produtiva, mas também mais iguais em termos de capacidade de definir os rumos políticos das sociedades.
Nunca escaparemos das elites econômicas, políticas e intelectuais, mas elas perderão poder relativo e abrirão espaço para o ideal socialista democrático na medida em que um Estado renovado e um mercado ativo logrem promover o desenvolvimento econômico, facilitem e obriguem competitivamente a generalização da educação e transformem os cidadãos detentores de direitos em cidadãos que efetivamente exercem os direitos e obrigações de cidadania. O socialismo não será o resultado do colapso do capitalismo, mas do seu êxito. E se, para o êxito do capitalismo, o liberalismo e a democracia são, ao mesmo tempo, fins em si próprios e meios efetivos de alcançar bons resultados, também para o socialismo, o liberalismo e a democracia serão essenciais, como Carlo Rosselli tão bem viu no início deste longo século.

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