São Paulo, domingo, 18 de maio de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Uma história reescrita

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Alguns anos atrás, o jornalista norte-americano Robert Kaplan publicou em uma revista um artigo sobre as futuras zonas de desastre social no mundo, despertando o interesse do Departamento de Estado, que lhe financiou tudo que fosse necessário para transformar o texto em livro. Obras sobre política ou cultura internacional se multiplicam, com o apoio de governos, universidades e instituições privadas, nas livrarias européias e norte-americanas.
E no Brasil? O interesse parece tão mínimo que nem mesmo livros -recentes, mas já clássicos- como "Fantasmas Balcânicos", do próprio Kaplan, ou "O Túmulo de Lênin" (sobre o fim da URSS), de David Remnick, foram traduzidos no país. Cada vez mais, o pior provincianismo parece campear nas terras brasílicas. O fato, pouco denunciado, de que praticamente nenhum romancista nacional de primeira linha ambientou nem sequer parte de uma narrativa sua no exterior bastaria para demonstrar que o fenômeno é antigo. E só tem se agravado.
Não há, portanto, como qualificar "Os Escombros e o Mito", de Boris Schnaiderman, com outro adjetivo: trata-se de um livro heróico. Schnaiderman, sozinho, por conta própria, sem virtualmente nenhum apoio oficial ou "institucional", realizou um trabalho que, em lugares mais interessados, exigiria o esforço de uma pequena legião de eruditos, historiadores, críticos de literatura, arte e música, jornalistas, todos eles merecendo verbas generosas, num esquema VIP, com hotéis cinco estrelas, secretárias executivas e passagens na primeira classe dos aviões.
O tema ostensivo de seu ensaio são as revelações da glasnost, ou seja, os fatos novos (porque anteriormente ocultados pelas autoridades) que começaram a vir à luz, na URSS, tão logo Mikhail Gorbatchov, o último líder soviético, iniciou sua política de liberalização em 1985. Sabe-se que cada virada ideológica do regime comunista fazia a história ser reescrita. Pois bem, esse ano marcou a reescritura definitiva da história, pois o que começou a emergir dos escombros, o que começou a sobressair de incontáveis camadas de mitos fabricados, levava um único nome: a verdade.
As convulsões de "outra" superpotência nuclear, tendo que processar sete décadas de memória recém-recuperada enquanto se convertia (ou se reconhecia?) subitamente num país de Terceiro Mundo assolado pela criminalidade, pela inflação e dominado por centenas de organizações mafiosas operando em conjunto com uma administração corrupta são, sem dúvida, um tema épico, mas que se ramifica em tantas direções que se torna quase impossível segui-las numa só narrativa.
Para dar conta dessa complexidade labiríntica, Schnaiderman optou por um mosaico narrativo composto de capítulos dedicados a tópicos específicos que, no entanto, insistem em se interpenetrar. A intersecção entre as artes já fora feita pelos próprios autores, pois em raros países a poesia, a prosa, a pintura, o teatro, o cinema e a crítica colaboraram entre si tão ativamente quanto na Rússia dos anos 10/30.
A política e a história, por sua vez, focos privilegiados de interesse dos criadores, tampouco deixaram de mostrar por eles seu interesse recíproco, geralmente silenciando-os e matando-os. Nessa trama, o que mantém os fios entretecidos, impedindo-os, porém, de se emaranharem, é a própria voz do narrador.
Crítico e estudioso da literatura russa, tradutor de Púchkin, Dostoiévski, Tolstói e Tchékhov, entre outros, co-autor (com Haroldo e Augusto de Campos) da exemplar "Antologia da Poesia Russa Moderna", fundador da cadeira de russo da USP, Schnaiderman escreveu também um belo romance sobre sua participação, enquanto soldado da FEB, na campanha da Itália. Embora semi-autobiográfico, esse livro se caracterizava por uma espécie de pudor narrativo destinado a despir o autor de qualquer traço de heroísmo pessoal. O que acontece em "Os Escombros e o Mito" não é diferente.
Numa certa leitura, este novo livro é também a autobiografia intelectual de um eslavista que, nascido justamente em 1917 (ano da revolução), na cidade ucraniana de Uman, e tornando-se de fato brasileiro sete anos depois, assiste, sobretudo de longe, à mais revolucionária reviravolta no seu campo de estudos. Para um especialista na cultura russa -que, daqui, acompanhava a cena soviética mais ou menos como Drummond esperando "notícias da Espanha"-, o que ocorreu nos últimos dez e tantos anos não é qualitativamente diferente daquilo que, para os estudiosos da Bíblia, do judaísmo e do cristianismo, aconteceu quando, em 1947, um pastor beduíno de cabras descobriu, às margens do Mar Morto, uma enorme biblioteca esquecida havia quase dois milênios.
Chegando, neste mês, aos 80 anos, o autor realiza, no contexto das revelações da glasnost, o balanço cultural concomitante de uma carreira prolífica e de um período excepcional. Ele o faz, além disso, com um apetite e uma abertura que não apenas não caracterizam as novas gerações intelectuais como tampouco são frequentes num Brasil no qual só se reafirmam a inapetência e o isolacionismo.

Lançamento: O livro "Os Escombros e o Mito", de Boris Schnaiderman, será lançado no dia 26 de maio, às 19h, no Centro Universitário Maria Antônia (r. Maria Antônia, 294, tel. 011/255-7182).

Texto Anterior: O socialismo liberal de Rosselli
Próximo Texto: LITERATURA; FILOSOFIA; EDUCAÇÃO; COMUNICAÇÃO; CRÍTICA; POLÍTICA; CRÍTICA; POESIA; REVISTA
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.