São Paulo, domingo, 18 de maio de 1997
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A imprensa em tempos de revolução

JEAN M. CARVALHO FRANÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A Revolução Francesa pode ser incluída naquele pequeno grupo de acontecimentos históricos que, em virtude das transformações socioculturais que puseram em marcha, afetaram, direta ou indiretamente, a vida de boa parte das nações do mundo. Nunca é demais lembrar que muitos dos elementos constitutivos das chamadas sociedades modernas conheceram a sua formulação primeira durante a Revolução. Daí o interesse sempre renovado que esse período da história da França tem despertado. Afinal, quando nos debruçamos sobre ele, temos a possibilidade de contemplar o nascimento de um mundo que, em larga medida, continua a ser o nosso.
É essa experiência que nos proporciona a leitura de "Revolução Impressa: A Imprensa na França (1775-1800)". O livro é uma espécie de remate da exposição comemorativa do bicentenário da Revolução Francesa, organizada pela New York Public Library em 1989. Trata-se de uma obra coletiva, coordenada pelos historiadores Robert Darnton e Daniel Roche, dedicada a analisar o papel da imprensa durante os anos da Revolução. Sua novidade está, sobretudo, em não abordar a palavra impressa simplesmente como um registro do que se passou durante o processo revolucionário. Os autores, em textos claros e bem articulados, procuram demonstrar que os produtos da prensa tipográfica atuaram com uma força ativa nesse processo e foram decisivos para os rumos que ele tomou.
O livro divide-se em três partes: "Condições Pré-Revolucionárias", "A Revolução nos Negócios da Imprensa" e "Os Produtos do Prelo". Na primeira, voltada para a apresentação do indústria editorial sob o Antigo Regime, transitamos de uma descrição dos asfixiantes mecanismos de controle do processo de edição para uma análise das muitas formas de burlá-los. Tal percurso permite-nos avaliar como as bases ideológicas do Antigo Regime foram corroídas pela circulação subterrânea de livros proibidos. E não somente daqueles livros filosóficos e políticos que temos o hábito de agrupar sob o rótulo de literatura iluminista. Foi esse conjunto heterogêneo de publicações, um conjunto que punha lado a lado a liberdade e a libertinagem, que ajudou a minar a ordem social absolutista. E foi o poder e a penetração desses textos subversivos que levaram o ex-censor da monarquia francesa, Lamoignon de Malesherbes, a questionar a eficiência da censura e lançar as bases da discussão acerca da liberdade de imprensa e do controle racional e produtivo do mundo da impressão.
A segunda seção oferece-nos a oportunidade de acompanhar a derrocada da cultura literária do Antigo Regime, mais especificamente, o ruir da infra-estrutura legal e institucional que amparava o processo de edição, a destruição da sofisticada rede de censura vigente, o desmoronamento da organização corporativa do trabalho de impressão e a redefinição da relação do público leitor com os produtos tipográficos. Dois aspectos desse processo são ironicamente atuais. Um deles é a reação da Corporação Livreira de Paris à liberdade de imprensa. Essa poderosa instituição, ao ver ir pelos ares o seu monopólio sobre a produção e distribuição de livros, desencadeia uma verdadeira campanha alertando para a inevitável decadência cultural que essa nova situação traria consigo. Os argumentos desses livreiros são facilmente identificáveis com um certo discurso antitelevisivo, de matriz européia, que circula na nossa sociedade. Um discurso que, tal como o primeiro, vê como uma ameaça qualquer alteração nos padrões de produção e transmissão da cultura.
Outro aspecto que merece destaque diz respeito às relações estabelecidas durante o processo revolucionário entre a política, a livre circulação de informações e a formação da opinião pública. De forma muito resumida, pode-se dizer que os jornais da Revolução Francesa desencadearam uma problemática, cujo equacionamento se tornaria fundamental para a sobrevivência das democracias modernas: conciliar a liberdade de imprensa e a estabilidade governativa -problema significativamente agravado depois que a mídia eletrônica passou a dividir espaço com a imprensa escrita, conferindo ao mundo da política uma visibilidade jamais imaginada.
A terceira parte de "Revolução Impressa" ocupa-se do material editado durante a Revolução. Os livros, sem dúvida, mas também as canções, as estampas, os jornais, os almanaques, os manuais de civismo e os panfletos. A análise desse vasto conjunto evidencia o papel que jogou o material impresso na construção dos mitos da Revolução, mais que isso, na edificação do novo mundo que emergiu durante o processo revolucionário.
Tomemos, a título de exemplos, o ensaio "Panfletos: Libelo e Mitologia Política". Nele, Antoine de Baecque (Universidade de Paris 1) examina os muitos libretos pornográficos que circularam durante a Revolução, procurando evidenciar as conotações políticas das picantes e debochadas narrativas aí vinculadas. No decorrer da sua exposição, vemos ganhar forma, de um lado, o nobre decadente, homossexual, impotente, pervertido e corroído pelas doenças venéreas; do outro, o revolucionário viril e saudável, senhor da sua sexualidade. Em outras palavras, vemos ganhar forma uma mitologia política interessada em enterrar a velha ordem social e exaltar a sociedade que emergia do esforço revolucionário. Depois das máquinas de propaganda que apareceram no século 20, exemplos como o citado podem parecer singelos. No entanto, esse aparente simplismo desfaz-se quando atentamos para o fato de que o princípio subjacente aos panfletos pornográficos, às estampas, às canções e a muitos outros impressos que circulam durante a Revolução em pouco difere daquele que norteia as arquiteturas luminosas do nazismo ou as sofisticadas campanhas estatais dos nossos dias. Aqui como lá, tratava-se de coordenar uma série de influências para moldar um tipo específico de cidadão.
O grande trunfo de "Revolução Impressa" está em promover uma reavaliação do papel da imprensa no contexto revolucionário. É certo que muito já foi escrito sobre a importância do jornalismo como criador da opinião pública e como motor da Revolução, todavia, nessa obra, é todo o complexo mundo da impressão e o seu contributo para a construção de um novo cidadão e de um novo mundo que é posto em cena. Essa singularidade, por si só, justifica uma leitura atenta do livro. Afinal, para nós que vivemos numa sociedade na qual governar confunde-se, às vezes, com administrar índices de popularidade e em que uma série de bem cuidadas reportagens num jornal televisivo pode facilmente legitimar ou deslegitimar uma qualquer medida governamental, é sempre útil conhecer com mais detalhes esse período da história do Ocidente em que, pela primeira vez, tomar o poder confundiu-se com tomar a palavra e difundi-la.

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