São Paulo, domingo, 18 de maio de 1997
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A consciência do provisório

RÉGIS BONVICINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma das características da poesia brasileira no e do século 20 foi a de ter se organizado sob a "forma" de movimentos literários, cíclicos, que se expandiam para outros ramos da arte -ecoando vanguardas e retaguardas, no início européias, e, depois, norte-americanas. "Forma" aqui empregada no sentido de Ludwig Wittgenstein, do "Tractatus": "A forma é a possibilidade da estrutura".
O primeiro desses movimentos, o modernismo, desencadeado em 1922, por Mário e Oswald de Andrade, propôs questões que permanecem vivas até hoje, como, por exemplo, as lançadas pelo "Manifesto da Poesia Pau-Brasil", de 1924 (Oswald de Andrade), das quais cito algumas, que foram encontrar respostas afirmativas no concretismo de 1956 e no tropicalismo de 1967. (O movimento da "Poesia Marginal", de 1975, pode ser visto como um dos desdobramentos do tropicalismo, sobretudo no Rio de Janeiro, tendo-se em mente que o tropicalismo foi, sob certo ângulo, uma releitura, no âmbito da massa, do modernismo. A "Poesia Marginal" explorou detalhes modernistas, como o "poema-piada", e resolveu precariamente o tópico da reinvenção de uma poesia coloquial). Oswald: "A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da saudade universitária".
Andrade concluía seu manifesto propondo que fossemos "apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia, de balística. Tudo digerido. Sem 'meeting' cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio...". Aqui se concentram questões que, cada poeta, de cada movimento, por a ou por b, entre eles mencionaria o da "Geração de 45" -inspirado em parte no academicismo anglo-americano (nova crítica) dos anos 30 e 40 (Eliot, Lowell, Bishop, sim, e Frost, entre tantos)-, cada um, a sua maneira, procurou responder. Poesia brasileira de exportação, isto é, uma poesia que passasse a dialogar ativamente com outras literaturas e que deixasse de ser receptáculo passivo de influências, deixasse de ser "periférica".
Embora vivos e essenciais, os variados desafios lançados pelo modernismo, e não só por Oswald, encontraram respostas contundentes nas poesias de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Murilo Mendes e, depois, nas de Vinícius de Moraes e João Cabral de Melo Neto. Adiante, tais desafios foram retomados pelo concretismo, que, entre outros méritos, reafirmou a necessidade de uma atuação de cunho exploratório, experimental, como o principal caminho para a criação de uma poesia brasileira, de caráter inaugural, que se irradiasse. O concretismo (neoconcretismo), além de ter reinventado a tradução literária, lançou e ou atraiu, mesmo que temporariamente, bons poetas, menos ou mais vinculados, como o sofisticado Haroldo de Campos de "Servidão de Passagem" ou já nem tão "concretista" de "A Educação dos Cinco Sentidos" (1985) e de "Galáxias", Ferreira Gullar, Augusto de Campos, Afonso Ávila, José Paulo Paes, Décio Pignatari e o surpreendente Edgard Braga, com seus grafites incisivos -sem falar de Mário Faustino, morto precocemente, mas com obra significativa.
Essa questão, a do exploratório de cunho brasileiro, permaneceu viva no tropicalismo de Caetano Veloso e de Torquato Neto, para, a partir dos anos 70, ir se perdendo na pobreza de resultados, na falta de recepção crítica e -sobretudo- nos discursos de militância de movimentos, grupos e críticos literários. Uma das causas foi, seguramente, o regime militar, que se iniciou em 1964 (Gullar foi perseguido e o tropicalismo acabou em exílios) e só se encerrou, apenas formalmente (a democracia brasileira é incipiente e direitos fundamentais são violados todos os dias), em 1985. A outra, o declínio da utopia socialista.
Nesse sentido, as propostas coletivas do concretismo (uma delas: a de rompimento com o conceito "romântico" de autoria) e do tropicalismo, de reafirmação do exploratório numa perspectiva local/universal, foram se congelando -à revelia ou não- na obra de vários (não na de Caetano, por exemplo, apesar de momentos esparsos de queda), em "normas" de escolas lítero-musicais. O que permitiu, por um lado, o reagrupamento de poéticas conservadoras, avessas às mudanças sociais e estéticas.
E, por outro, o aparecimento de respostas criativas contundentes individuais (por exemplo, Paulo Leminski, na literatura, e Itamar Assumpção e Duofel, na música, para não falar de outros campos) -com a desvantagem de serem elas pouco visíveis à questão fundamental de uma poesia (arte) brasileira de invenção. De passagem, entre as poéticas conservadoras de hoje, arrolo, para permanecer apenas na área da escritura, um vago neomodernismo, um claro neoparnasianismo (grandiloquência, metros fixos utilizados a sério, temas elevados) e uma poesia visual, primária, de repetição.
O saldo, porém, mais grave da ausência de uma "agenda" de inovação coletiva e renovada, diversa, foi o do estabelecimento de um autoritarismo, de caráter publicitário, na ação e reflexão de poetas, críticos e professores universitários, com a propagação da verdade da existência de um "modelo único", de lado de cá ou do lado de lá. E a resposta à questão de como "apenas (sermos) brasileiros de nossa época" deixou, no aspecto coletivo, de ser sequer tocada. Quase todos passaram a aceitar, passivamente, esta ou aquela catalogação.
Talvez Torquato Neto tenha pressentido essa situação de crise no poema "você me chama", pós-tropicalista (início dos anos 70): "você me chama/ eu quero ir pro cinema/ você reclama/ e o meu amor não contenta/ você me ama/ mas de repente aquele trem já passou/ faz tanto tempo / aquele tempo acabou". Torquato, aqui, inventa uma nova poesia coloquial, diferente da modernista, enfrentando o abismo existente entre português escrito e falado. Todavia o que importa destacar nele é sua consciência: inicialmente, ingênua, amorosa, para, numa revelação, abrupta também na linguagem, se voltar como consciência de que toda uma época se acabou: "faz quanto tempo/ aquele tempo acabou".
A percepção de que "aquele tempo acabou" e de que "existe" um vazio, correlativo ao desmanche do país, encontra voz na poesia que se fez a partir dos anos 70 e 80. (É de se notar que existem semelhanças, coincidentes, e não mero macaqueamento, entre a L=a=n=g=u=a=g=e Poetry -EUA, anos 80- poesia da linguagem do pulmão, lang, com os textos dos dispersos autores brasileiros (1)±).
Ana Cristina Cesar escreve (1982): "A história está completa: wide sargasso sea, azul/ azul que não me espanta, e canta como uma/ sereia de papel". O azul que não espanta a sereia, irônica e impotente, de papel. A consciência -irresignada- de um momento de perda de capacidade criativa está presente em todo o trabalho de Cesar e esse é um de seus muitos méritos.
A "certeza" de que "aquele tempo acabou" reaparece, numa de suas interpretações possíveis, no "Teatro Ambulante" (1977-1990), de Duda Machado -que narra a história de atores, que representaram, por três anos, a mesma peça e que, com rotina e sucesso, foram se alienando do texto original. O poema retrata o mal-estar provocado pela "perda do original" e, ironicamente, a felicidade do reencontro com ele, mas, agora, somente na condição de repetição ou de "escola": "...Só mais tarde, quando já jantavam no restaurante do hotel, é que se sentiram capazes de reconhecer com excitação que haviam seguido diálogo por diálogo, cena por cena, a peça original..." (2).
A poesia de Duda, em outro texto, "Acontecimento" (1977-1990), retoma a necessidade de inovação, agora, com inflexão afirmativa, diversa das propostas pelos movimentos dos anos 50 e 60: "Qualquer/ algum ninguém/ um outro/ que/ por sua vez/ miragem/ de reflexos espelhados/ ponto/ de intersecção do real/ foi/ está escrito. "O sujeito deixa a forma de miragem (impossibilidade) ou de reflexo espelhado (copista) para, com trânsito no tempo real, no tempo do agora, se afirmar: "Está escrito".
A retomada do tom de inovação -de forma diversa (no Brasil, mais do que a "angústia da influência", há a "angústia do influenciador")- foi uma das constantes da vida e obra de Paulo Leminski. Algumas de suas linhas, críticas e amargas, podem ser lidas nessa direção: "Apagar-me/ diluir-me/ desmanchar-me/ até que depois/ de mim/ de nós/ de tudo/ não reste mais/ que o charme", de 1979, cuja força repercutiu, de algum modo, poucos anos mais tarde, no "pós-tudo", de Augusto de Campos, publicado em 1985.
Entretanto há, em seu trabalho, um poema, publicado em sua segunda coletânea, "Polonaises" (1980), que sintetiza as tensões que aqui procuro trabalhar de inovação e contemporaneidade -numa perspectiva brasileira, de independência e diálogo: "Um dia/ a gente ia ser homero/ a obra nada mais nada menos que uma ilíada/ depois/ a barra pesando/ dava pra ser aí um rimbaud/ um ungaretti um fernando pessoa qualquer/ um lorca um éluard um ginsberg/ por fim /acabamos o pequeno poeta de província/ que sempre fomos/ por trás de tantas máscaras/ que o tempo tratou como flores".
A peça é das mais densas, tematizando questões de imitação, provincianismo e outras, presentes em toda a poesia brasileira do século 20. (Continuamos, ao cabo, "depois de tudo", uma poesia forte, porém com írrita irradiação). Vou, todavia, enfocar, nesse passo, apenas um aspecto: o do resgate -por negação- da capacidade de inovação e distinção, para além do discurso das militâncias, da poesia contemporânea que se faz no Brasil. A propósito desse poema, recito Wittgenstein: "É essencial para a coisa poder ser parte constituinte de um estado de coisas". Movimentos literários, isto é, novas "normas" de percepção, por uma via, (simbolismo francês, futurismo português, surrealismo, poesia beat etc.) são repensados (ironizados) por meio de seus autores (o futurismo português é mais importante do que o autor Fernando Pessoa?), para, no verso final, protegidos pela voz do poeta (por várias razões, na primeira pessoa do plural), serem desconsiderados à condição de "máscaras" -que, castigo de profeta, foram tratadas como flores (vida breve). A consciência da provisoriedade de todos os cânones, anticânones, revisões é a pedra de toque dessa peça, que, constituindo um novo estado de coisas, desloca o "escolástico" e enfatiza a necessidade da invenção de um OUTRO, -qualquer algum, ninguém- que, entretanto, pouco visível, está escrito.

Notas:
1. Para uma aproximação ao conceito de Language Poetry, movimento que se recusou à escola e também à idéia mesma de movimento, num sentido tradicional, transcrevo trechos da introdução de Douglas Messerli à antologia "Language Poetries" (New Directions): "...Para estes poetas, a linguagem não é algo que explique ou traduza a experiência, mas é a fonte da experiência. Linguagem é percepção". Ou, ainda: "Language não é um movimento no sentido tradicional dos movimentos de arte...".
2. Veja-se a coincidência do texto "My Life", de Lyn Hejinian, posterior a "Teatro Ambulante" com o próprio "Teatro", de Duda Machado.

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